'Presidente legitima grupos não democráticos', diz constitucionalista
"O presidente legitima grupos não democráticos a enfrentar o resultado das urnas". A declaração é do jurista, professor de Direito Constitucional, mestre e doutor em Ciência Política Oscar Vieira Vilhena, em entrevista à BBC News Brasil. Vilhena atua como professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e é fundador de organizações não-governamentais que militam na defesa dos direitos humanos.
A avaliação do professor foi feita nesta terça-feira (1º), poucas horas depois do curto e esperado discurso do presidente Jair Bolsonaro (PL) sobre o resultado das eleições. Bolsonaro demorou 44 horas para se pronunciar sobre a disputa na qual perdeu para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O petista obteve 50,9% dos votos e Bolsonaro ficou com 49,1%.
Bolsonaro não cumpriu a tradição de ligar para o candidato vencedor e reconhecer a derrota. Durante o seu silêncio desde o domingo (30), no entanto, apoiadores do presidente bloquearam rodovias em centenas de pontos em todo o país contestando o resultado das eleições. Muitos alegaram, sem apresentar provas, supostas irregularidades durante o pleito.
Em grupos organizados em redes sociais como WhatsApp e Telegram, apoiadores de Bolsonaro afirmavam que a mobilização defendia a realização de uma nova eleição e a destituição de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
Uma decisão do Supremo determinou que a Polícia Rodoviária Federal fizesse o desbloqueio das rodovias federais. Em diversos estados, o transporte de passageiros e cargas perecíveis foi prejudicado.
Em meio ao cenário de crise, o discurso de Bolsonaro teve pouco mais de dois minutos. Ele agradeceu os votos obtidos, disse que sempre atuou dentro das "quatro linhas da Constituição" e disse ainda que as manifestações no Brasil são "bem-vindas" desde que pacíficas.
"Os atuais movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral. As manifestações pacíficas sempre serão bem-vindas, mas os nossos métodos não podem ser os da esquerda, que sempre prejudicaram a população, como invasão de propriedades, destruição de patrimônio e cerceamento do direito de ir e vir", disse o presidente em seu pronunciamento.
Para o professor, a postura do presidente desde a derrota alimenta grupos radicalizados dentro da sua base de apoio.
"Isso alimenta grupos que foram radicalizados durante o seu governo a buscar uma resistência que é incompatível com o regime democrático", avaliou o professor.
Vilhena argumenta que a Constituição Federal garante o direito à manifestação, mas que isso não significa que estradas possam ser bloqueadas.
"Há uma linha tênue que deve ser observada. Você pode se manifestar, mas essa manifestação pode ser julgada abusiva quando ela impede o exercício de direitos por outras pessoas", afirmou.
Vilhena disse ver com preocupação a combinação de silêncio do presidente Bolsonaro após o resultado das eleições, a multiplicação de bloqueios em rodovias pelo Brasil e o conteúdo do discurso do presidente. Segundo ele, o comportamento do presidente não chegou a lhe surpreender, mas ele diz estar preocupado com os impactos no futuro do país.
"Vejo essa conjugação de eventos com preocupação. O presidente Bolsonaro desafia a ordem constitucional há muito tempo e, nesse sentido, não encaro como surpresa. É preocupante, porque é o reflexo dessa hostilidade do presidente Bolsonaro em relação à ordem democrática. E há grupos bastante organizados que se alinham na posição dele", disse.
Apesar disso, o professor disse acreditar que esses grupos deverão ser contidos e que a transição entre o atual governo e a futura administração sob o comando de Lula deverá ocorrer normalmente.
"Eu não creio que eles (grupos contrários aos resultados das eleições) terão capacidade de impedir a transição. Todos os setores políticos já reconheceram a vitória de Lula. Houve amplo reconhecimento internacional. Não vejo como mudar o curso dessa história", afirmou.
Responsabilização
Vilhena disse que, ao que tudo indica, a PRF não vem sendo assertiva o suficiente para coibir a realização dos bloqueios de rodovias. As críticas começaram a surgir na segunda-feira (31) quando vídeos circularam na internet mostrando agentes do órgão supostamente sendo coniventes com manifestantes.
"Há diversas manifestações, seja do comando, seja de núcleos da Polícia Rodoviária Federal, que indicam que não só não houve esforço (para coibir manifestações), mas muitas vezes houve uma verdadeira aliança com esses movimentos, razão pela qual o Supremo determinou que a polícia desbloqueie as rodovias", afirmou o professor.
Em entrevista coletiva nesta terça-feira, diretores da PRF afirmaram que já identificaram agentes suspeitos de terem descumprido as ordens para realizar o desbloqueio das rodovias.
O professor disse ainda que os termos usados por Bolsonaro em seu discurso impedem que ele possa vir a ser responsabilizado por incentivar as manifestações em curso no país.
"Não vejo que ele tenha cometido nenhum crime hoje [...] Ele não diz que não reconhece (as eleições). Ele diz que elas foram injustas e que essa era a sensação que apoiadores tinham e que por isso eles estavam se manifestando.[...] mas ele faz a ressalva de que qualquer manifestação deve ocorrer dentro do campo constitucional", afirmou.
Nos Estados Unidos, por exemplo, o ex-presidente Donald Trump é um dos alvos de uma comissão que investiga os tumultos ocorridos no dia 6 de janeiro de 2021 quando apoiadores do político republicano invadiram o Capitólio causando cinco mortes.
Vilhena disse ainda que apesar da atuação de grupos radicais ligados ao bolsonarismo causar ruídos, seria preciso diferenciar esse segmento do total de eleitores que Bolsonaro teve no segundo turno. Segundo ele, os grupos que contestam o resultado das eleições não seriam a maioria do eleitorado que votou pela reeleição do presidente.
"Há uma parte dos eleitores do Bolsonaro que são radicais e antidemocráticos e isso é grave. Agora, é importante ter clareza de que nem todos os eleitores do presidente se encontram nesse segmento mais radical. Muitos votaram nele por outros motivos. Não podemos confundir os 49% de eleitores que votaram em Bolsonaro e dizer que há 49% de brasileiros que não são democráticos", avaliou o professor.
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