Lula não tem força para enfrentar questões militares agora, diz historiador
Historiador Carlos Fico diz que postura conciliadora é "compreensível" após eleição apertada.
O historiador Carlos Fico, estudioso da Ditadura Militar (1964-1985), considera que é "compreensível" a opção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de adotar uma postura conciliadora com as Forças Armadas no início do seu governo.
Na sua avaliação, o petista não tem força para enfrentar agora o antigo problema brasileiro de "intervencionismo militar" na política, após ter sido eleito em uma vitória apertada contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, governo em que as Forças Armadas alcançaram o maior espaço desde a redemocratização.
"Qualquer governo que assumisse agora teria dificuldade (na relação com os militares), a não ser que fosse de extrema-direita novamente. Então, acho compreensível a tentativa de acalmar os ânimos", afirmou em entrevista à BBC News Brasil.
"Compreendo que seja impossível enfrentar os problemas que existem na relação dos militares com a política, dos militares com os civis, depois de toda uma longa trajetória de falas políticas indevidas, de indisciplina, de quebra da hierarquia, de tudo que aconteceu no governo Bolsonaro", acrescentou.
Para o professor titular de História Brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a politização das Forças Armadas aumentou a partir do governo de Michel Temer e, em especial, nos últimos quatro anos, mas é um problema "estrutural, extremamente complexo", que se reflete no "excesso de atribuições indevidas" atribuídas aos militares pelas constituições brasileiras ao longo dos séculos.
Fico diz que isso permanece na Constituição atual por meio do artigo 142, que estabelece que "as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".
Segundo o historiador, essa redação foi incluída por lobby dos militares e dá margem para interpretações equivocadas que atribuem às Forças Armadas um pretenso papel moderador sobre os três Poderes da República: Executivo, Legislativo e Judiciário.
Apesar de considerar que isso "fragiliza muito a institucionalidade da democracia brasileira", o historiador não acredita que haverá qualquer tentativa de mudar esse trecho da Constituição nos próximos anos.
"A alteração disso é uma coisa que criaria um tumulto muito grande entre os militares. Muito maior do que, por exemplo, foi a Comissão Nacional da Verdade (durante o governo Dilma Rousseff)", afirma.
"Precisa de um Presidente da República muito forte pra enfrentar esse tipo de problema. No momento, a gente está no início do governo, vindo de uma eleição que foi disputada quase que, diria, voto a voto. Então, temo que isso vá ter que aguardar um pouco", reforçou em outro trecho da entrevista.
Lula escolheu o político conservador José Múcio (PTB) para o Ministério da Defesa e nomeou como comandante das três forças os generais-oficiais mais antigos: general Julio César de Arruda (Exército), almirante de esquadra Marcos Sampaio Olsen (Marinha) e o tenente-brigadeiro Marcelo Kanitz Damasceno (Aeronáutica).
Apesar de considerar as escolhas compreensíveis dentro de uma estratégia de conciliação, Fico considerou "muito ruim" a antecipação da nomeação dos comandantes para antes da posse de Lula, após pressão das Forças Armadas.
Ele também criticou a declaração de Múcio de que os acampamentos em frente aos quartéis pedindo um golpe militar após a eleição de Lula, justamente como base no artigo 142 da Constituição, seriam uma "manifestação democrática".
"É um equívoco, um excesso de zelo dele. Ele não é tão habilidoso assim como se propaga, pelo visto, né?", questionou Fico.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - Como avalia esse início de relação do governo Lula com os militares? A escolha de um ministro da Defesa conciliador foi adequada, ou deveria haver um enfrentamento mais duro à politização das Forças Armadas?
Carlos Fico - Qualquer governo que assumisse agora teria dificuldade, a não ser que fosse de extrema-direita novamente. Então, acho compreensível a tentativa de acalmar os ânimos, de não trazer temas que são realmente problemáticos na trajetória histórica das Forças Armadas para serem discutidos neste momento.
Não sei se no futuro haverá espaço para isso. Eu acho que durante muito tempo não vai haver. Então dá pra entender a escolha de um ministro com esse perfil de conciliação.
O que eu não gostei mesmo foi de ter havido aquela pressão para o presidente, ainda presidente eleito, fazer a nomeação logo de um ministro com esse perfil, inclusive sob pena de alguma insubordinação, que afinal acabou acontecendo. Então, me pareceu ruim que o Lula tivesse cedido àquela pressão. Houve aquela hipótese dos comandantes renunciarem e isso funcionou como uma forma de pressão. E, afinal de contas, acabou que eles deixaram os cargos mesmo antes da transmissão de cargo de comandante.
O próprio ministro da Defesa também deixou o cargo antes. É uma coisa ruim que não tenha tido transmissão de cargo e que os comandantes indicados por Lula tenham sido nomeados como interinos pelo Bolsonaro. Então, já começou meio mal.
Mas eu compreendo que seja impossível enfrentar os problemas que existem na relação dos militares como a política, dos militares com os civis, depois de toda uma longa trajetória de falas políticas indevidas, de indisciplina, de quebra da hierarquia, de tudo que aconteceu no governo Bolsonaro.
BBC News Brasil - Por que a saída dos comandantes das Forças antes da posse de Lula é algo tão ruim?
Carlos Fico - Os comandantes militares do período do Bolsonaro não queriam, digamos, prestar continência para o Lula. Parece um problema menor para as pessoas no geral, mas no contexto do ambiente militar isso tem grande significação simbólica.
Então, para evitar perfilar e fazer continência ao novo presidente, os comandantes militares da época do Bolsonaro começaram a discutir uma proposta do antigo comandante da Aeronáutica de renunciar no dia 23 de dezembro e Bolsonaro, então, nomearia interinamente os novos comandantes indicados pelo Lula, que foram escolhidos pelo critério de antiguidade. Por que esse critério foi escolhido? Naturalmente, porque não há como contestar.
Eventualmente, o Presidente da República e o ministro da Defesa poderiam ter preferência por um outro general, um outro brigadeiro e um outro almirante, não necessariamente o mais antigo. Preferência, sei lá, por trajetória profissional, perfil político, qualquer coisa assim. Então, a escolha do critério da antiguidade pelo ministro da Defesa também faz parte dessa estratégia de conciliação.
Esse tipo de pressão é indevida e me pareceu muito negativa. Lula não foi capaz de resistir à pressão dos militares. Poderia ter sido o próprio Múcio, que é um perfil conciliador, e, em seguida, o Múcio nomearia os comandantes, e os antigos comandantes do Bolsonaro, como sempre aconteceu, fariam a transmissão do cargo pro novo comandante. Então, essas cerimônias (de transmissão de cargo) são tradicionais e não estão acontecendo.
BBC News Brasil - Múcio disse a jornalistas, após a cerimônia para assumir o cargo, que os atos na frente dos quartéis seriam democráticos. Como vê essa fala?
Carlos Fico - É um equívoco, um excesso de zelo dele. É claro que manifestações que peçam intervenção militar ou golpe militar são antidemocráticas e deveriam ser coibidas. Isso aí é muito ruim, muito negativo e certamente desnecessário. Não havia a menor necessidade. Mesmo com essa estratégia conciliadora, apaziguadora, não haveria necessidade de ele dar essa declaração. Ele não é tão habilidoso assim como se propaga, pelo visto, né?
BBBC News Brasil - Após esse início conciliador, há algo que o governo Lula possa fazer para reduzir a politização das Forças Armadas?
Carlos Fico - Eu acho que a simples existência de um governo democrático, funcional e racional colabora no sentido de uma despolitização mais explícita. Na verdade, essa atuação indevida dos militares na política vem acontecendo com mais visibilidade desde o governo Michel Temer (2016-2018). E, no governo Bolsonaro, o presidente da República todo dia, praticamente, fazia um investimento nessa presença política das Forças Armadas, como se elas fossem dar o golpe. Então, o fato disso deixar de existir já é, por si só, muito positivo.
Agora, esse não é um problema pontual que começou com o Temer e se agravou com o Bolsonaro. Esse é um problema histórico, de longa duração. Vem desde o fim da Guerra do Paraguai (1864 a 1870), ainda durante o Império, no século 19. Ele atravessou todo o período republicano e, inclusive, tem uma dimensão, como eu sempre falo, constitucionalizada, que é o famoso artigo 142 da Constituição, que foi muito mal redigido e dá atribuições excessivas às Forças Armadas.
Muitos oficiais generais entendem que o artigo 142, assim como outros artigos de Constituições passadas, daria ? o que é equivocado, mas muitos oficiais generais acham ? às Forças Armadas o papel de moderador. É um problema estrutural, extremamente complexo. Na tradição constitucional brasileira, a atribuição das competências das Forças Armadas sempre foi excessiva, em competências indevidas.
É um problema que ultrapassa a crise criada pelo Bolsonaro e que vai ser muito difícil resolver. Não imagino que isso (a atual redação do artigo 142) vá ser sequer enfrentado durante os próximos quatro anos. Não sei quando será possível a gente ter um ambiente político para enfrentar esse problema, o que fragiliza muito a institucionalidade da democracia brasileira.
BBC NEWS Brasil - Então, na sua avaliação, o Congresso precisa aprovar emenda constitucional redigindo novamente esse artigo?
Carlos Fico - Exatamente. Parte desse artigo é muito ruim porque, durante a Assembleia Constituinte de 1987, 1988, quando a gente tinha saído há poucos anos da ditadura, havia uma preocupação grande do Ministro General Leônidas Pires Gonçalves, que era ministro do Exército do governo José Sarney (primeiro presidente Civil após o fim do regime militar), mas muito duro, muito preocupado com a tradição.
Ele fez um lobby muito forte na Constituinte e conseguiu garantir duas coisas que integram a tal tradição constitucional: a Garantia da Lei e da Ordem, que é um papel de polícia que já não deveria haver, e também a garantia dos poderes constitucionais. Essa expressão, sobretudo, é que é ruim.
A Constituição diz que compete às Forças Armadas aquelas coisas tradicionais em qualquer país, a defesa da pátria contra ameaças externas, e também a Garantia da Lei e da Ordem e dos poderes constitucionais. Sobretudo essa última expressão ficou muito confusa, dúbia. Ninguém sabe exatamente o que isso significa. Porque garantir os poderes constitucionais, ou seja, o Congresso, o Executivo, o Judiciário, é um papel de todo mundo, né? E quem ameaça esses poderes constitucionais? Então isso fica ao arbítrio das Forças Armadas.
O Supremo Tribunal Federal fez uma decisão liminar interpretando o artigo 142 e dizendo: "não, não tem essa história de intervenção (dos militares nos demais Poderes), nada disso, não é isso que a passagem quer dizer". A mesa da Câmara também se manifestou, durante o governo Bolsonaro, dizendo que não. E, portanto, só pelo fato do Supremo e da mesa da Câmara terem sido obrigados a se manifestar, você vê que há um problema aí.
Tem essa interpretação otimista, que é claro que eu concordo com ela, mas a verdade é que qualquer pessoa que leia esse artigo vai ver que ele tem esse problema que eu mencionei. A alteração disso é uma coisa que criaria um tumulto muito grande entre os militares. Muito maior do que, por exemplo, foi a Comissão Nacional da Verdade (durante do governo Dilma Rousseff). O relatório da Comissão (responsabilizando militares pela tortura e assassinato de opositores da ditadura) gerou muita insatisfação entre os militares e também está na origem, vamos dizer, dessa antipatia que eles têm contra o PT, Lula, e, sobretudo, a Dilma.
Então são vários focos de problemas, mas o principal é essa tradição histórica, que vem desde o século 19, de várias intervenções militares, que acabou levando a diversas constituições, inclusive a primeira, de 1891, a darem essa atribuição excessiva, que agora se expressa nessa passagem do artigo 142 (da Constituição de 1988).
BBC News Brasil - Houve um excesso no uso das operações de Garantia da Lei e da Ordem, a partir dos governos petistas?
Carlos Fico - Essa utilização das Forças Armadas como força policial é claramente indevida. É claro que existe em outros países também, como no Brasil, previsão para esse uso no caso de situações extremamente dramáticas. Mas elas não podem ser banalizadas. Acredito que, com o tempo, a criação de forças especiais, federais, talvez vinculadas à Polícia Federal, vai acabar resolvendo esse problema.
Porque esse é um caso de problema estabelecido pelo artigo 142 que prevê exatamente a Garantia da Lei e da Ordem para as Forças Armadas. Então você vê como ele é terrível. O artigo 142 é escrito mais ou menos da seguinte maneira: às Forças Armadas competem isso, aquilo e aquilo, a garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de um deles, a Garantia da Lei e da Ordem.
Então, só a Garantia da Lei e da Ordem tem a previsão de iniciativa de um dos três poderes. Por isso que eu digo que a garantia dos poderes constitucionais é precária. E, para finalizar, tem o seguinte: se um presidente do Congresso ou presidente do Supremo pedem a aplicação da Garantia da Lei e da Ordem, quem decide, em última instância, é o presidente da República, conforme a lei que regulamenta o artigo 142. Então, você vê que é uma coisa cheia de detalhes, cheia de problemas.
BBC News Brasil - Então os outros Poderes podem chamar as Forças Armadas a atuar, mas é o presidente que tem a palavra final?
Carlos Fico - Era o receio que havia agora durante a eleição. Então, vamos supor que houvesse uma iniciativa de bolsonaristas mais radicais ainda, contestando as eleições, invadindo, sei lá, o Congresso, o TSE, e o Congresso ou o Supremo pedissem a aplicação da Garantia da Lei e da Ordem. Quem ia decidir? Seria o Bolsonaro. Ele poderia dizer: "não, não precisa, isso é uma manifestação democrática", e ficaria por isso mesmo. Então você vê que tem vários problemas que, inclusive, vão para o plano da legislação.
BBC News Brasil - O presidente Lula não citou as Forças Armadas nos dois discursos de posse. Seria mais um movimento para distensionar a relação, não provocar os militares?
Carlos Fico - Talvez não distensionar ou não provocar, mas sobretudo talvez não dar muita importância, o que seria positivo.
Na geração que me antecede, que é um pouco mais velha do que eu, e que, portanto, enfrentou mais diretamente a ditadura, eu acho que tem um problema geracional na relação com militares. Então, todos os presidentes democratas, como Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma, têm esse perfil. Eu não sei se é medo, se é uma atitude um pouco de covardia, mas tiveram muita cautela na relação com os militares. E, portanto, nunca enfrentaram, vamos dizer assim, de frente esses problemas que mencionei.
Espero que, com o tempo, isso se dissolva para que esse velhíssimo problema, o intervencionismo militar, seja enfrentado de frente, com maior segurança, maior clareza. Porque não dá pra você ter uma democracia consolidada sem a proeminência do poder civil. E isso tem uma dimensão que é simbólica também. Não é só constitucional, mas é simbólica. A maneira como os presidentes da república se relacionam com os militares, me parece que sempre houve, desde o fim da ditadura, esse excesso de reverência.
BBC News Brasil - No primeiro governo Lula havia um contexto mais favorável para a despolitização das Forças Armadas do que agora? Foi uma oportunidade perdida?
Carlos Fico - Sim, sobretudo o governo Fernando Henrique, que conseguiu um grande avanço com a criação do Ministério da Defesa. E, no caso do governo Lula, sobretudo depois dos três primeiros anos, em que havia aquele temor sobre o que o Lula vai fazer, o que não vai fazer, e aí ficou claro que era um governo democrático, fortalecido pelo sucesso do próprio governo. Portanto, esses dois momentos foram perdidos.
No governo da Dilma, eu acho que não havia, por conta do passado de militante da esquerda revolucionária. Mas, no caso do Lula e do Fernando Henrique Cardoso, esse problema poderia ter sido enfrentado. Aliás, Fernando Henrique Cardoso foi um dos constituintes que tentou melhorar o tal artigo 142 e não conseguiu. Assim como outros, José Genoíno, Afonso Arinos de Melo Franco. Mas, enfim, já perdemos algumas oportunidades, com certeza.
Agora, vai depender muito do que vai acontecer nos próximos anos, porque precisa de um Presidente da República muito forte pra enfrentar esse tipo de problema. No momento a gente está no início do governo, vindo de uma eleição que foi disputada quase que, diria, voto a voto. A diferença (de Lula sobre Bolsonaro) foi muito pequena. Então, temo que isso vá ter que aguardar um pouco.
BBC News Brasil - Voltando aos acampamentos na frente dos quartéis contra a eleição de Lula: as Forças Armadas foram coniventes?
Carlos Fico - Houve uma conivência dos comandantes bolsonaristas e do próprio Ministro da Defesa bolsonarista. Porque é claro que o Bolsonaro queria manter aqueles acampamentos. Houve claramente conivência porque eles deveriam ter convocado as polícias militares locais para coibir os excessos dos manifestantes. E, mesmo, estarem acampados ali, naquela região que é de segurança militar, é uma coisa completamente sem sentido. Porque eles não permitem nem que você passe sem parar com o carro nessas regiões, e permitiram um acampamento totalmente heterodoxo.
Agora, tem uma outra coisa também que é o papel do Congresso Nacional e dos governadores. Quer dizer, os governadores de Estado não poderiam mandar PMs simplesmente desmontar aquilo, mas poderiam falar com os comandantes das unidades militares no estado: "olha, dá um jeito nisso, faz alguma coisa". Não houve nada disso. Porque os governadores do Rio, de São Paulo, de Minas Gerais são rescaldos do bolsonarismo. E tampouco o Congresso Nacional fez qualquer coisa. Até porque tem o perfil político que tem. Então foi um conjunto de falta de iniciativas que, certamente, no caso dos comandantes, caracteriza conivência.
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