O que se sabe sobre a crise da covid-19 na Coreia do Norte
Já sofrendo sob sanções internacionais e severa escassez de alimentos, povo norte-coreano agora encara a pandemia sem infraestrutura sanitária suficiente. No fim de junho, o ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un, alertou sobre uma "grande crise" nacional relacionada à pandemia de covid-19, gerando especulações de que o rudimentar sistema de saúde do isolado Estado asiático esteja tendo dificuldades para debelar um significativo surto da infecção viral.
Nos últimos 18 meses, Pyongyang insistia que nenhum caso fora detectado no território norte-coreano, e que medidas preventivas drásticas, incluindo o fechamento das fronteiras nacionais, haviam provado ser eficazes para conter o novo coronavírus. Até o momento, foi praticamente impossível confirmar tais afirmativas, até por não haver mais no país organizações internacionais de assistência ou de saúde pública.
Especialistas consideram, contudo, extremamente improvável a Coreia do Norte ter escapado totalmente incólume, sobretudo devido à sua localização geográfica, com fronteiras comuns com a China, epicentro original da pandemia, e a anterior dependência norte-coreana das exportações e importações chinesas.
Ameaças vagas, problemas concretos
Kim desencadeou as novas suspeitas de uma crise interna de saúde durante uma prolongada reunião do governista Partido dos Trabalhadores da Coreia, que presidiu na terça-feira (29) em Pyongyang. Ele aproveitou a ocasião para criticar publicamente altos dignatários seus, por deixarem de implementar medidas necessárias ao combate do vírus.
"Altos funcionários encarregados de assuntos estatais importantes negligenciaram a implementação de importantes decisões do Partido para tomar medidas organizacionais, institucionais, materiais, científicas e tecnológicas [...] associadas à crise sanitária mundial", citou-o a agência estatal de notícias KCNA.
O fato "causou um caso crucial de criar uma grande crise para garantir a segurança do Estado e a integridade do povo, e acarretou graves consequências", declarou Kim.
Não há detalhes sobre o que teriam sido, exatamente, o "caso crucial", a "grande crise" ou as "graves consequências". Contudo as imagens televisivas do encontro do politburo revelam que diversos altos funcionários não estavam mais presentes, sendo provável que tenham sido rebaixados, ou até mesmo punidos por suas com penas de prisão ou em campos de trabalhos forçados.
"A purgação daqueles que se considera terem 'falhado' é um fato da vida na Coreia do Norte, embora não esteja claro qual possa ser o grau de severidade dessas penalidades", explica Daniel Pinkston, professor de relações internacionais do campus da Troy University em Seul.
Tampouco claro está, a seu ver, o que poderia ter sido feito para proteger melhor os 25,7 milhões de norte-coreanos, dado o estado em que a nação atualmente se encontra. "Não é segredo que eles estão realmente padecendo, no momento." Há anos o regime Kim tem estado sob sanções internacionais, por insistir em desenvolver armas nucleares e mísseis balísticos de longo alcance.
"Então, eles estavam realmente enfrentando carestia quando a pandemia eclodiu na China, e a Coreia do Norte reagiu simplesmente fechando suas fronteiras", prossegue Pinkston.
"Praticamente nada entrou e nada saiu, e foram fechadas até mesmo as rotas de contrabando, que efetivamente funcionavam como uma linha de sobrevivência para um grande número de cidadãos comuns. É impossível estimar precisamente o impacto, mas é óbvio que a economia foi severamente afetada."
Antes da pandemia, a fome
Com muito menos alimentos sendo importados da China, piorou a escassez de comida da Coreia do Norte, depois de uma safra ruim em 2020, com as plantações atingidas em particular por dois grandes tufões, na principal região agrícola do país.
Ahn Yinhay, professora de relações internacionais da Universidade da Coreia, em Seul, sugere que tanto as acusações de incompetência de Kim Jong-un contra seus ministros do mais alto escalão, quanto a purgação de seus quadros indicam que o autocrata está "assustado" com a situação.
"Pelo que estamos escutando, parece muito provável que o vírus esteja se alastrando pela população, o que tem que ser uma preocupação, já que eles simplesmente não dispõem das capacidades médicas para tratar o povo", diz.
"Ninguém acreditava que houvesse zero casos, antes", prossegue a pesquisadora. "Mas este é um desdobramento bastante extremo, e sugere que eles não estão mais conseguindo dar conta da situação. E quando isso se combina à escassez de alimentos que os cidadãos comuns já estão vivenciando, fica claro por que a liderança está assustada."
Um relatório divulgado no fim de junho pelo Instituto de Desenvolvimento, sediado em Seul, indicava que o Norte está enfrentando um déficit de mais de 1,3 milhão de toneladas de grãos necessários a suprir uma população que já sofre de subnutrição.
Para sustentar essas estimativas, há conclusões similares de agências humanitárias, inclusive da ONU, e relatórios da imprensa dissidente. Esta cita fontes da Coreia do Norte, segundo as quais famílias inteiras já teriam sucumbido à forme; e as Forças Armadas estariam impossibilitadas de funcionar em capacidade total, com tantos soldados debilitados pela falta de nutrição.
O medo de mais uma "marcha árdua"
Talvez o indicador mais significativo da gravidade da situação tenha partido do próprio Kim, quando em maio ele conclamou a nação a se preparar para mais uma "marcha árdua".
A proclamação seguramente despertou temor em quem se recorda dos quatro anos de fome em massa, em meados da décadas, quando cerca de 3,5 milhões morreram à míngua, devido a má gestão econômica, uma série de secas, o colapso do sistema de racionamento, de planejamento central, e a retirada do apoio dos aliados tradicionais de Pyongyang, sobretudo a Rússia.
Ahn ressalva, no entanto, que o regime norte-coreano conseguiu atravessar essas atribulações sem sinais de dissensão interna que colocassem em risco a liderança, e é provável que consiga fazê-lo mais uma vez.
"Mesmo quando tantos morreram, devido à falha de seus líderes em agir, estes se mantiveram no poder", enfatiza a professora radicada em Seul. "O domínio deles foi mais importante do que as vidas de tantos de seus cidadãos, e isso não mudou."
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