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Vacinação pelo setor privado é antiético e ineficaz no Brasil, diz advogado sanitarista

16.jan.2021 - Profissional de saúde prepara dose da Covaxin, vacina contra a covid-19, para aplicar no centro de vacinação em Nova Délhi, na Índia  - Adnan Abidi/Reuters
16.jan.2021 - Profissional de saúde prepara dose da Covaxin, vacina contra a covid-19, para aplicar no centro de vacinação em Nova Délhi, na Índia Imagem: Adnan Abidi/Reuters

28/01/2021 17h39

A iniciativa de empresas do setor privado no Brasil de adquirir vacinas e participar do processo de imunização é um "debate fora de hora", segundo o médico e advogado sanitarista Daniel Dourado. A proposta, apoiada pelo governo Bolsonaro, é considerada por ele antiética em um país com tantas desigualdades, mas em nações onde as campanhas e estratégias de vacinação são mais claras e estão avançadas, poderia contribuir no combate à pandemia.

No Fórum de Davos, empresas multinacionais colocaram em discussão a possibilidade de comprarem vacinas para imunizar grupos de seus interesses, como os próprios funcionários. O argumento é de que o setor privado pode contribuir para desafogar a situação de muitos governos e desonerar as contas públicas, em meio a um contexto de dificuldade para garantir o imunizante para toda a população.

"Vai depender da situação do controle da pandemia do país, principalmente do ponto de vista da cobertura das estratégias de campanhas e estratégias de vacinação nacionais. Quando uma campanha de vacinação já tem uma quantidade mínima suficiente para a população-alvo e que precisa ser imunizada prioritariamente, é possível haver uma associação com o setor privado, com clínicas ou mesmo com empresas que vacinem funcionários para agilizar o processo. Mas neste caso é preciso ver se já há uma estratégia bem definida e que garantam que os grupos prioritários sejam vacinados primeiro, isso é fundamental", analisa Daniel Dourado, pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da USP e do Institut Droit et Santé da Universidade de Paris.

No caso brasileiro, o especialista considera o debate "fora de hora". "Primeiro que num país com tantas desigualdades, isso seria naturalmente antiético", defende. A razão disso é sanitária. "O Brasil não tem ainda sequer as doses de vacinação para a primeira fase do grupo 1 prioritário", diz em referência ao grupo composto por idosos acima de 75 anos, indígenas aldeados, moradores de asilos com mais de 60 anos e profissionais de saúde.

"Para essa população seriam necessários cerca de 30 milhões de doses e o país não tem ainda nem 15 milhões, ou seja, nem a metade para fase 1. Nesta situação a estratégia de vacinação não se pode dar o luxo de incorporar alguma vacina que seja usada em alguém que não faça parte dos grupos prioritários", diz.

O médico explica que os grupos prioritários, identificados como os de maior risco de desenvolver formas mais graves da doença, devem ser vacinados pois o objetivo, além de poupar vidas, é diminuir a pressão sobre o sistema de saúde para evitar sua saturação. Com os hospitais e as redes assistenciais lotadas, a repercussão seria também dramática para o tratamento de outras doenças.

"No cenário de escassez global em que a vacina está em falta no mundo todo, e principalmente no Brasil, não faz sentido buscar uma estratégia que vai vacinar pessoas que não estão nos grupos prioritários, como foi a iniciativa apoiada pelo governo das empresas vacinarem os trabalhadores. A maioria não faz parte dos grupos prioritários e deveriam aguardar mais tempo. Seria usar vacinas que deveriam ir para idosos e profissionais de saúde, por exemplo", diz.

Daniel Dourado refuta também o argumento de que a intervenção do setor privado poderia aliviar a pressão sobre a estrutura dos governos e aliviar os gastos públicos. "É uma espécie de profecia autorrealizável. O governo não comprou as vacinas que deveria ter comprado, que é uma obrigação, depois apoia o setor privado para que compre e a justificativa do setor privado é de que o governo não comprou. O governo criou essa situação par apresentar essa suposta solução", denuncia.

Essa estratégia da participação do setor privado levaria a possibilidade de imunização de pessoas que não fazem parte do grupo prioritário. "Esses subgrupos não vão ser necessariamente os que impactam, proporcionalmente, em mortes e internações de casos graves. Neste cenário de escassez, cada vacina adquirida pelo setor privado é uma a menos que deveria ser incorporada no programa nacional de imunização", acrescenta. "Não há outro caminho do que a vacinação em fila única pelo SUS porque os critérios devem ser sanitários e epidemiológicos", avalia Dourado na entrevista à RFI.

A origem do problema dos "fura fila"

O médico e advogado sanitarista, que atualmente vive em Paris onde desenvolve pesquisas na área de saúde e direito, vê com muita preocupação o fenômeno crescente dos "fura fila", como vem sendo chamadas as pessoas que não estão no grupo prioritário desta fase inicial da campanha de vacinação mas conseguiram se imunizar. Há casos registrados em pelo menos 17 estados desta ação criminosa passível de ser punida por lei.

Segundo Daniel Dourado, o surgimento dos "fura fila" está relacionado ao problema de comunicação do governo federal, que não assumiu o papel de protagonista que deveria ter tido na campanha nacional de vacinação. "Ele (governo federal) se omitiu, não comprou vacinas e além disso não comunicou adequadamente. Temos visto o contrário disso", disse. O especialista lembra que desde o início da pandemia o presidente Jair Bolsonaro e outras autoridades enviaram mensagens contraditórias e atrapalharam o trabalho de muitos governadores e prefeitos que buscaram adotar as medidas sanitárias.

As mensagens do governo, que colocava em dúvida as medidas restritivas e a eficácia das vacinas criou, segundo Daniel Dourado, uma sensação de "cada um por si e a de que a decisão seria meramente individual". Essa percepção se reflete agora nos problemas enfrentados em vários estados. "A lógica da vacinação é coletiva. O que precisa ser transmitido à população é que o benefício principal é coletivo. É mais interessante para a sociedade, e mesmo para as pessoas que não sejam dos grupos prioritários, que esses grupos sejam vacinados antes. Uma pessoa que furou a fila pode ser alguém que não seria um caso de risco grave, pode precisar do sistema de saúde por outro motivo e pode encontrá-lo saturado", exemplifica."Olhar a vacina com um bem de consumo do indivíduo está na origem deste problema", diz, defendendo a atuação principalmente dos ministérios públicos estaduais para combater os crimes dos "fura filas".

"O Brasil está no pior momento da pandemia"

O surgimento da variante brasileira, a partir de casos no Amazonas, é motivo de muita preocupação pois tende a acelerar a expansão da Covid-19 para outras regiões, depois de contribuir para agravar a crise no sistema de saúde de Manaus. A atual crise sanitária do país, que segundo ele vive o "pior momento da pandemia", exige reflexões dos dirigentes no sentido de adotar medidas que devem ser mais restritivas para conter a propagação, segundo Daniel Dourado.

"Por mais que essa situação não esteja muito bem entendida, consolidada na população, o país está com mais de 60 mil casos oficiais diários, com mais de mil mortes diárias há várias semanas. Isso preocupa porque há sinais de fadiga nas medidas", ressalta. Outro fator agravante foi a postura do governo federal que não deu o recado claro para a população de medidas importantes como distanciamento físico e uso de máscara. "As autoridades que tentaram fazer isso no começo foram desestimuladas e houve um certo descrédito em relação a essas medidas. É bem possível que regiões do Brasil devem falar seriamente em fazer confinamento. Algumas mais parcial, outras mais rigoroso. Vai depender desse equilíbrio delicado entre novos casos, potencial de saturação da rede hospitalar e capacidade de atender essas pessoas", afirma.

Daniel Dourado também critica o atraso do governo federal na apresentação do Plano Nacional de Imunização, após 10 meses do início da pandemia, e a falta de uma política clara de aquisição de vacinas, que contribuem para o agravamento da situação sanitária grave na qual se encontra o país.

"De certa forma já é consensual que ouve uma estratégia ostensiva do governo federal de deixar o vírus se propagar. Agora me parece que tem essa mudança de discurso, mas com essa ideia e preocupação de voltar a economia, incentivando que as empresas a vacinar seus funcionários. Isso não vai ajudar, e se ajudar vai ser uma ajuda muito pequena diante do que deveria ser. Não é só uma questão ética, mas de política sanitária e constitucional. O Estado tem a obrigação de garantir ao direito à saúde do cidadão", concluiu.