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Pandemia de covid-19 pode interferir na tensão militar na Ucrânia? Entenda

Forças armadas da Ucrânia se reúne a tropas de Odessa - Press Service of the 35th Separate Naval Infantry Brigade/Handout via REUTERS
Forças armadas da Ucrânia se reúne a tropas de Odessa Imagem: Press Service of the 35th Separate Naval Infantry Brigade/Handout via REUTERS

Da RFI

07/02/2022 08h48Atualizada em 07/02/2022 10h12

A pandemia velha de guerra e sua nova variante ômicron chegaram à frente de confronto, talvez futuramente de batalha, da Ucrânia. O general Oleksandr Syrskyi, comandante das forças terrestres ucranianas, informou ao jornal britânico The Guardian que, dos 150 mil homens de que dispõe, 2.400 estão com covid-19.

Ele disse que o número não é assustador, mas que tem de ser levado em conta no caso de entrar em combate. Inclusive porque, disse ele, o número de infectados pode ser bem maior, uma vez que há muitos casos assintomáticos.

Não há dados sobre os casos de Covid na frente russa, onde a concentração de tropas na fronteira passou dos 100 mil homens, com mais tropas indo para a vizinha Belarus e forças navais rumando para a reanexada província da Crimeia. Mas estima-se que a situação deva ser proporcionalmente parecida.

No total, a Rússia e a Ucrânia, assim como outros países da Europa, estão passando por um grande acréscimo de novos casos devido à variante ômicron e sua subvariante BA-2. No dia 4 de fevereiro houve quase 44 mil novos casos na Ucrânia, e também quase 177 mil na Rússia, números considerados recordes em ambos os países.

Em parte, atribui-se este aumento tanto na Ucrânia quanto na Rússia ao baixo número de vacinações, menos de 50% das respectivas populações. Nos dois casos, a resistência à vacinação é grande. Mas no caso das Forças Armadas, a situação é diferente: na Ucrânia 99,3 % dos militares receberam duas doses de alguma vacina; na Rússia, 95% dos militares têm duas doses de vacina e 25%, 3 doses.

Esta interferência da pandemia na tensão militar em torno da Ucrânia é apenas mais um elemento na extensa cadeia de transformações que a Covid-19 introduziu na vida cotidiana em todas as suas dimensões, de mudanças de hábito na vida privada ao cenário político em escala mundial.

Desconfiança na classe política

Em recente entrevista à revista alemã Der Spiegel, a infectologista Jana Schroeder assinalou que, de um modo geral, a pandemia aumentou a desconfiança em relação ao establishment político em vários países. A desconfiança se deve, em grande parte, à diversidade de atitudes por parte de políticos, dos partidos a que pertencem e também dos países diante da pandemia.

A Áustria tornou-se o primeiro país europeu a fazer a vacinação obrigatória para maiores de 18 anos. Em compensação, a Dinamarca tornou-se o primeiro país do continente a abolir todas as restrições sanitárias, inclusive o uso de máscaras. Algumas autoridades sanitárias saúdam a variante ômicron, dizendo que ela vai transformar a pandemia numa endemia crônica mais leve, como a gripe. Outras advertem que uma doença endêmica pode ser tão perigosa quanto uma epidêmica.

Deve-se assinalar também que a pandemia trouxe novas e por vezes amargas polarizações entre pessoas, muitas vezes dividindo famílias e comprometendo velhas amizades. Por exemplo, a polarização entre defensores e inimigos da vacinação.

Entre os não-vacinados por convicção, a pandemia abriu o caminho para o crescimento de partidos e movimentos de extrema-direita, ajudando a provocar uma migração de votos para eles oriundos dos tradicionais partidos conservadores.

Isto aconteceu na última eleição alemã, quando 50% dos que recusam a vacinar-se aderiram ao extremista Alternative für Deutschland (AfD). É possível que o mesmo tenha acontecido nas recentes eleições portuguesas, em que o radical partido Chega, de extrema-direita, cresceu exponencialmente às custas de seu rival também de direita, mas mais moderado, o Partido Social Democrata. E também é possível que o mesmo venha a ocorrer na futura eleição francesa, marcada para abril.

A crescente polarização de posições intensificou a tendência de substituir argumentos nas escolhas e suas defesas pela fé ou afirmação de crenças e descrenças nas diferentes posições, como no caso citado da vacinação e também da proteção das crianças.

A infectologista Schroeder enfatizou que as famílias e escolas estão sendo submetidas a situações estressantes devido à insistência na ideia de se retomar a qualquer preço a prática das aulas presenciais. O fato é que o ritmo destas aulas é frequentemente perturbado por novos surtos de contágio nas escolas, provocando quarentenas, ausências e substituição de professores, gerando confusão e instabilidade ao invés de segurança e confiança.

Esta situação de disritmia se reproduz em vários outros setores da vida cotidiana, incluindo o transporte público e o próprio atendimento e controle da pandemia. Diversos serviços médicos, de enfermagem e de coleta de dados vêm sofrendo interrupções devido à falta de pessoal, o que aumenta a insegurança geral pela desconfiança de que os números disponíveis sejam subestimados, como apontou, em suas declarações, o comandante ucraniano, general Oleksandr Syrskyi.

Nada há de estranho, portanto, em que a presença da pandemia venha a interferir decisivamente, se é que já não interfere, nas opções disponíveis na frente militar do atrito entre os diferentes atores do confronto na Ucrânia. O curioso disto tudo é que a pandemia, por estas artimanhas do destino, possa favorecer a alternativa de paz e de busca de uma solução diplomática.