Versão argentina da 'Ficha Limpa' avança; lei pode impedir Kirchner candidata
A Câmara de Deputados da Argentina aprovou o projeto de lei Ficha Limpa, que impede pessoas condenadas por corrupção, em segunda instância, de disputarem eleições. Se o projeto for aprovado pelo Senado, o primeiro alvo será a ex-presidente Cristina Kirchner. A Argentina será o sexto país na América Latina a adotar a iniciativa caso aprove a proposta.
Às 22 horas desta quarta-feira (12), depois de mais de onze horas de debate, a Câmara de Deputados da Argentina aprovou a chamada "Ficha Limpa" com 144 votos a favor, 15 a mais do que os necessários. Outros 98 deputados votaram contra e dois se abstiveram.
Os parlamentares contrários à proposta são basicamente aliados da ex-presidente Cristina Kirchner (2007-2015), já condenada por corrupção em duas instâncias. Ela seria, portanto, o primeiro alvo da proposta, inspirada na lei brasileira. Também votaram contra o projeto os deputados dos partidos de esquerda.
Se a "Ficha Limpa" passar pelo Senado, as pessoas condenadas em duas instâncias por crimes de corrupção não poderão ser candidatas.
O projeto de lei argentino prevê ainda que os condenados não possam ser designados a nenhum cargo público como ministros, secretários, autoridades de órgãos públicos, diretores de empresas públicas e representantes diplomáticos.
A proposta também determina a inegibilidade de quem for condenado em segunda instância até 180 dias antes de uma data eleitoral. Como neste ano haverá eleições legislativas em 26 de outubro, essa data será o próximo 29 de abril. Se até esse dia, a lei for sancionada, a candidatura de Cristina Kirchner será anulada.
Os governistas e os aliados festejaram. Os deputados peronistas em geral e, em particular, a sua vertente mais radical, o kirchnerismo, acusaram o governo de querer proibir a candidatura de Cristina Kirchner, usando a Justiça.
Houve quem reforçou essa teoria com o exemplo do presidente Lula, proibido de ser candidato em 2018, vítima da lei que ele mesmo sancionou em 2010.
"O que aconteceu no Brasil foi uma experiência demolidora. Em 2010, o Brasil votou a Ficha Limpa com o aval de Lula da Silva e, poucos anos depois, o juiz Sérgio Moro, que não era juiz competente (jurisdição), impediu-o de ser candidato com uma segunda condenação", frisou o deputado Miguel Pichetto, para quem a Ficha Limpa "dá completa discricionariedade aos juízes para governarem com uma supremacia política na divisão de poderes".
Milei quer Cristina na disputa
O argumento de que a Lei aponta contra Cristina Kirchner é discutível. Existem iniciativas no Congresso argentino de seguir o exemplo brasileiro da Ficha Limpa desde 2016, quando o país era governado por Mauricio Macri (2015-2019). Esses projetos não obtinham quórum suficiente, sempre boicotados pelo Peronismo.

Na época, Cristina Kirchner estava longe de ser condenada. A ex-presidente só teve uma sentença, em primeira instância, em dezembro de 2022. A segunda condenação chegou em novembro passado. Por outro lado, o presidente Javier Milei, no fundo, não quer que Cristina Kirchner fique inelegível.
Em novembro do ano passado, houve duas tentativas, impulsionadas pelos deputados do PRO, partido do ex-presidente Mauricio Macri. As duas fracassaram por falta de quórum de deputados aliados de Milei. O episódio deixou em muitos a ideia de que Milei protege Cristina por conveniência política.
Todos os analistas concordam que Milei quer polarizar as eleições com Cristina Kirchner, sem tirá-la da disputa. Cristina Kirchner é a rival ideal. Tem baixa popularidade e foi condenada por corrupção.
"Talvez, o governo se satisfaça somente com a ideia de discutir a questão, sem querer que se torne Lei. Nos planos de Milei, o projeto não passará pelo Senado", explicou à RFI o cientista político Gustavo Marangoni, uma referência no país.
"Se não passar pelo Senado, Milei terá conseguido o seu objetivo: colocar Cristina Kirchner no centro de um cenário desgastante, aparecer como quem impulsionou a Ficha Limpa e deixar o 'kirchnerismo' como um bloco que se opõe ao combate à corrupção", aponta Marangoni, diretor da consultora M&R Asociados.
A ex-presidente tem senadores suficientes para impedir a aprovação. Depois Milei fará campanha, acusando Cristina Kirchner de corrupta e a ex-presidente vai alegar que freou um projeto que pretendia retirá-la da disputa, tentando aplicar um golpe nos bastidores.
"Assim, Milei e Cristina Kirchner fazem o jogo de principais antagonistas entre si e consolidam a polarização", observa o analista. O Peronismo foi o movimento político que governou a Argentina durante 28 dos últimos 35 anos.
Diversos integrantes do partido foram condenados por corrupção, incluindo, além de Cristina Kirchner, o ex-presidente Carlos Menem (1989-1999), condenado em duas instâncias. Até mesmo o ex-presidente Alberto Fernández está sob investigação.
Desde a recuperação da Democracia em 1983, o Peronismo tem maioria no Senado, controlando as designações de juízes.
Senado sob controle do Peronismo
A chance de a Ficha Limpa argentina ser aprovada pelo Senado é baixa, mas não pode ser descartada. Esse debate, ainda sem data, deixará claro o verdadeiro empenho do governo em querer a aprovação da Ficha Limpa.
"Ficará provado que o objetivo de Milei mais do que aprovar a Lei era instalar o assunto. Veremos qual era a verdadeira vocação do governo", avalia Marangoni.
O mais provável é que a lei não seja aprovada antes de 29 de abril, permitindo a Cristina Kirchner a chance de ser candidata a algum cargo legislativo que lhe dê imunidade parlamentar para não ser presa.
O que Milei realmente quer é que o Senado, controlado por Cristina Kirchner, aprove a designação do juiz Ariel Lijo como membro do Supremo Tribunal.
O nome indicado por Milei é de um juiz famoso por inocentar acusados de corrupção. Então, essa é uma das contradições de Milei: critica a casta corrupta, mas, neste caso, defende quem protege a casta.
A Ficha Limpa poderia ser uma moeda de troca com Cristina Kirchner que daria os votos para aprovar a designação do juiz.
"Surgiu a possibilidade de que avance a aprovação do juiz Ariel Lijo. Precisamos ver, nas entrelinhas, o que acontece com essas disputas. Observar até onde há um jogo político com as eleições de outubro no horizonte", pondera o analista Gustavo Marangoni à RFI.
Exemplo para a América Latina
A maior prova de que a iniciativa tem inspiração brasileira é o nome. Os países hispânicos que adotaram a lei mantiveram o nome em português com uma ligeira adaptação "Ficha Limpia". Em espanhol, "ficha" não se usa com esse sentido, sendo o habitual "prontuario policial" ou "certificado de antecedentes penales".
Mesmo assim,além do Brasil, na América Latina cinco países já adotaram a "Ficha Limpia": Peru, Uruguai, Chile, Honduras e México.
A Argentina está nesse debate nacional, mas oito das 24 províncias argentinas já adotaram como lei provincial. Algumas dessas províncias argentinas foram além: incluíram na proibição de candidaturas aqueles condenados por outros crimes como os sexuais e os "feminicídios".
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