Se a pintura de "Ecce Homo" não foi restaurada, a cidade de Borja foi

Doreen Carvajal

Em Borja (Espanha)

  • Arnau Bach/The New York Times

    ''Ecce Homo'', retrato de Jesus Cristo, depois de ser restaurado por Cecilia Giménez, 83, em 2012

    ''Ecce Homo'', retrato de Jesus Cristo, depois de ser restaurado por Cecilia Giménez, 83, em 2012

Depois que uma viúva de 83 anos, artista plástica amadora, testou a mão na restauração de um afresco de quase um século de Jesus coroado com espinhos – "Ecce Homo" – na igreja local de Borja, teve de enfrentar o escárnio e a ridicularização.

As notícias sobre a restauração fracassada, ainda que bem intencionada, em 2012, giraram o mundo no Twitter e no Facebook – a imagem foi comparada a um macaco ou ouriço, e sobreposta em memes e paródias da Mona Lisa e numa lata de sopa Campbell's.

Mas hoje em dia, as pessoas neste vilarejo de palácios medievais e estradas sinuosas no nordeste da Espanha estão oferecendo à artista, Cecilia Giménez, e ao sua trabalho, uma miraculosa reavaliação.

O pesar se transformou em gratidão pela intervenção divina – a bênção da publicidade gratuita – que transformou Borja, uma cidade de apenas 5.000 habitantes, em um ímã para milhares de turistas curiosos, ansiosos para ver sua obra, e ressuscitando assim a economia local.
Vinícolas próximas disputam os direitos de colocar a imagem nos rótulos de seus vinhos. A versão borrada de Giménez é agora divulgada como um ícone da pop art.

Giménez – conhecida, assim como Madonna, simplesmente como Cecilia – é homenageada todo ano pelos moradores no dia 25 de agosto, o dia da transfiguração da pintura. Uma ópera cômica está sendo produzida nos Estados Unidos, contando a história de como uma mulher arruinou um afresco e salvou uma cidade.

"Para mim, é uma história de fé", diz Andrew Flack, libertista da ópera que viajou para Borja para pesquisar para a produção, que ainda está em andamento. "É um milagre como isso incentivou o turismo."

"Por que as pessoas estão vindo olhar, se é uma obra de arte tão horrível?", ele pergunta. "É uma espécie de peregrinação, transformada em fenômeno pela mídia. Deus opera de formas misteriosas. A sua ruína pode ser o meu milagre."

Desde a restauração, a imagem atraiu mais de 150 mil turistas de todo o mundo – Japão, Brasil, Estados Unidos –para o Santuário de Nossa Senhora da Misericórdia, uma igreja gótica do século 16, em uma montanha com vista para Borja.

Os visitantes pagam um euro para observar o afresco, envolto por uma parede descamada, atrás de uma tampa transparente parafusada, digna da Mona Lisa no Louvre.

O "Ecce Homo" original da igreja, um retrato de Jesus triste, data dos anos 30, quando Elías Garcia Martínez, um professor de arte de Zaragoza, pintou-o sobre a parede da igreja.

Os moradores de Borja não percebiam a pintura porque a igreja é dominada por um altar barroco dourado do século 18. Mas ao longo dos anos, Giménez foi ficando incomodada com o fato de a parte inferior do afresco estar desaparecendo, quase um terço dele, desintegrando-se com a umidade da igreja.

Hoje, em sua casa em Borja – em uma sala de estar cheia de paisagens pintadas por ela – Giménez conta que passava os verões em um apartamento perto da igreja. Ela diz que retocou o retrato várias vezes ao longo dos anos – com o conhecimento do padre e dos zeladores da igreja, uma família que vive lá há três gerações.

Arnau Bach/The New York Times
Cecilia Gimenez (centro), 83, que tentou em 2012 restaurar o quadro ''Ecce Homo''

Mas eventualmente, disse ela, a pintura exigiu um trabalho maior, e ela foi interrompida abruptamente depois que alguém reclamou após a primeira fase de seu trabalho. A história foi publicada em um jornal local, e então no mundo todo.

No início, depois que a notícia veio à tona, ela chorava muito e se recusava a comer, disseram seus parentes.

"Eu fiquei devastada", disse Giménez. "Eles diziam que tinha sido uma velha louca que tinha destruído um retrato que valia muito dinheiro."
Hoje sua notoriedade se foi. Ela entrega prêmios para uma competição de jovens artistas, que pintam seus próprios retratos do "Ecce Homo". Crianças vão apartamento dela perto do arco medieval de San Francisco e gritam: "Olhem, é a Cecilia. É Cecilia!", diz ela.

Neste Natal, a imagem do "Ecce Homo" dela está estampada nos bilhetes de loteria da cidade. O retrato também tem um papel importante em um filme espanhol popular, em que ladrões tentam roubá-lo.

"Não consigo explicar a reação. Fui ver o 'Ecce Homo', e ainda não entendo", diz o prefeito de Borja, Miguel Arilla, em seu escritório cheio de obras de arte.

Na crise econômica dos últimos seis anos, 300 empregos desapareceram, disse ele, mas com a explosão do turismo, os restaurantes ficaram estáveis. Os museus locais também se beneficiaram, diz ele. O Museu de Colegiata, ali perto, abrigado em uma mansão renascentista do século 16, teve um aumento no número anual de visitantes de 7.000 para 70 mil, para ver sua coleção de arte religiosa medieval.

Mas a fama também provocou disputas. Os netos do artista original cederam sua parte dos direitos em benefício de uma fundação do hospital que administra a igreja, diz o prefeito.

Mas, segundo ele, os bisnetos enviaram uma carta através de um advogado de Valência, pedindo para apagar totalmente o retrato porque a obra "prejudica a honra da família".

A cidade já encomendou um estudo profissional que concluiu que era impossível restaurar a obra.

Como presidente da fundação do hospital, Arilla também está envolvido nas negociações finais para vender os direitos para a utilização da imagem pela vinícola Aragonesas, na vizinha Magallón.

Poucas horas depois que a notícia da restauração fracassada surgiu, a vinícola entrou com um processo para garantir os direitos à imagem, de acordo com Fernando Cura, diretor comercial da vinícola. "A oportunidade foi que de repente surgiu uma notícia que coloca a região no mapa do mundo inteiro", diz.

Mas quatro horas depois, a vinícola Irmãos Ruberte também tentou registrar a marca, provocando uma disputa legal.

Para resolvê-la, Susana Ruberte disse que sua companhia encomendou uma obra original de Giménez para seu rótulo especial, o que finalmente permitiu que ela criasse sua própria versão de "Ecce Homo", demonstrando que ela de fato sabe pintar.

José M. Baya, dono da La Bóveda, na praça do mercado de Borja, diz que o dom artístico dela foi responsável por seu comércio prosperar.
Seu restaurante, em uma antiga adega de pedra, atrai turistas que gastam bastante, diz ele, até uma equipe de filmagem japonesa que pediu o cardápio inteiro, de duas páginas, para experimentar pratos como coelho e chouriço.

"O impacto de 'Ecce Homo' foi ótimo para os negócios", disse Baya, que se deu tão bem a ponto de abrir outro restaurante. "Infelizmente todo mundo vem para ver uma pintura que, francamente, é muito feia."

Tradutor: Eloise De Vylder

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