Violência no Rio

Opinião: Não transformem a morte de Marielle Franco em um melodrama da TV

Vanessa Barbara

Em São Paulo

  • Divulgação/PSOL

    Marielle Franco, vereadora do PSOL assassinada no Rio de Janeiro

    Marielle Franco, vereadora do PSOL assassinada no Rio de Janeiro

Faz mais de um mês que o Exército brasileiro assumiu o controle da segurança pública no Estado do Rio de Janeiro, seguindo um decreto presidencial para atacar o crime. Uma das vozes mais eloquentes contra essa intervenção foi a de Marielle Franco, uma mulher de 38 anos, negra e bissexual que veio da favela da Maré e era membro da Câmara de Vereadores do Rio.

Em 16 de março, ela foi assassinada com quatro tiros na cabeça depois de participar de um evento com outras mulheres negras no centro do Rio de Janeiro.

Franco foi eleita em 2016 e era a única mulher negra entre os 51 membros da Câmara municipal. Era uma defensora veemente dos direitos humanos, feminista, mãe, membro do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) e acabara de ser nomeada relatora de uma comissão legislativa que monitoraria a intervenção militar.

"Quem vigia os vigias, certo?", perguntou ela em uma entrevista no mês passado. "Quem deve prestar contas?" Essa não era uma pergunta retórica; era uma questão urgente. Em janeiro passado no Rio de Janeiro, pelo menos 154 pessoas foram mortas pela polícia; seis policiais foram assassinados durante o serviço. A maioria dessas pessoas, os civis e os policiais, eram negros e vinham dos bairros mais pobres do Rio.

Há uma preocupação de que esses números aumentem com os militares no controle. O principal comandante do Exército brasileiro, general Eduardo Villas Bôas, disse recentemente que suas tropas precisavam de "garantias para agir sem o risco de uma nova Comissão da Verdade no futuro", referindo-se à investigação dos abusos cometidos sob a ditadura militar que durou de 1964 a 1985. O comandante também manifestou interesse por conseguir "mandados coletivos" que seriam emitidos para uma área ampla, como por exemplo, uma favela inteira, e não para um endereço específico.

Franco defendeu todas as vítimas nessa "guerra às drogas". Enquanto trabalhou na Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Vereadores do Rio, ela ajudou dezenas de famílias de policiais mortos no cumprimento do dever. Em sete anos, segundo ela, nunca visitou uma família que morasse "da Tijuca para o centro", querendo dizer que a maioria dos policiais vive nos subúrbios mais pobres da cidade. "E geralmente são negros", disse.

Mas Marielle também era uma destemida crítica da violência do Estado. Tinha trabalhado como assessora de uma comissão parlamentar que investigou o envolvimento da polícia e de políticos em milícias. Alguns dias antes de ser assassinada, ela acusou o 41º batalhão da Polícia Militar, a unidade mais mortal, de aterrorizar e assediar os moradores da favela de Acari.

Divulgação/PSOL
Marielle Franco em comício durante as eleições de 2016

Na véspera do crime, ela lamentou a morte de Matheus Melo, um rapaz de 23 anos que levou um tiro quando saía de uma igreja. "Outro homicídio de um jovem que poderia ser atribuído à polícia", escreveu ela no Twitter. "Quantas pessoas ainda terão de morrer para que esta guerra termine?"

A identidade e o motivo dos assassinos de Marielle continuam desconhecidos, mas está claro que o crime foi premeditado: os assassinos esperaram que ela saísse do evento e a seguiram em dois carros por alguns quilômetros. Então efetuaram um tiroteio cuidadosamente planejado e rapidamente deixaram o local sem levar nada. Segundo investigadores, as balas vieram dos estoques de munição da polícia. (O ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, disse acreditar que elas foram roubadas de uma agência dos Correios.)

O Brasil é um dos países mais mortíferos para os defensores dos direitos humanos, ao lado da Colômbia, México e Filipinas. Segundo um relatório da Front Line Defenders, 67 ativistas foram mortos no Brasil no ano passado. De todos os casos acompanhados pela entidade, só 12% resultaram na prisão dos suspeitos. Isso parece comprovar a eficácia sinistra dos assassinatos.

Mesmo quando os assassinos desses defensores dos direitos humanos recebem cobertura na mídia, as pessoas aqui frequentemente criam outras narrativas para explicar os assassinatos: a pessoa foi morta por um amante, ou por traficantes de drogas ou pela máfia, ou cometeu suicídio. E pior: a pessoa talvez merecesse isso.

Está acontecendo agora com Marielle. Logo depois do assassinato, começaram a circular notícias falsas nas redes sociais. Algumas diziam que ela era casada com um traficante de drogas, outras que era membro de uma organização criminosa. Alguns artigos diziam que ela fumava maconha. Outros que ela teve um bebê aos 16 anos. Que crime! (A verdade: ela teve um bebê com 19 anos, uma menina chamada Luyara. Não posso imaginar como isso possa ser relevante para seu assassinato.)

Algumas semanas depois, a narrativa em torno da morte de Marielle está mudando mais uma vez. Noticiários de televisão exageram no melodrama, focalizando a tragédia humana; nunca são suficientes as imagens em close de parentes chorando. Então eles usam esse momento de dor para colocar tudo sob o guarda-chuva mais amplo da "violência" no Rio, para concluírem anunciando alegremente que o governo federal vai liberar mais algumas centenas de milhões de reais para a intervenção militar no Rio de Janeiro. Problema resolvido.

Isso é exatamente o oposto do que Marielle Franco defendia.

Ela passava os dias combatendo a desigualdade e a injustiça e não uma ideia abstrata de "violência". Por isso, não adianta trazer mais terror e repressão às favelas, matando mais das mesmas pessoas (negros, jovens e pobres). Desviar recursos de áreas como a saúde e a educação para financiar mais balas e tanques só vai agravar a violência. Nesse sentido, Marielle defendia uma política sobre drogas que não envolvia incursões armadas nas comunidades. Ela também apoiava maior diversidade na representação política, encorajando a participação e candidatura de mulheres, pessoas LGBT e indígenas. Seu caminho era o democrático, e não o caminho autoritário do regime militar.

Ela se considerava e a outras mulheres "uma verdadeira ameaça ao status quo", como escreveu no ano passado em um artigo de jornal. Na sua opinião, o governo queria restringir a democracia no Brasil. "Mas nós, mulheres negras dos bairros pobres, vamos enfrentar esse absurdo autoritário", disse ela.

Suas últimas palavras gravadas foram dirigidas a um grupo de jovens negras: "Vamos nos unir e ocupar tudo".

Caso Marielle: Manifestantes pedem rapidez na investigação

Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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