Há um Brasil que quer anistia de golpista e prisão de quem usa maconha
Tentativa de golpe de Estado é, sob qualquer aspecto, muito pior que o porte de drogas. Mas para uma parcela do Congresso e da extrema direita, precisamos dar anistia a quem atentou contra o Estado Democrático de Direito e mandar para o xilindró quem é pego fumando maconha.
Nesta quarta (6), o Supremo Tribunal Federal retomou a discussão tanto sobre a descriminalização do uso da maconha quanto da quantidade de porte de erva que separa um traficante de um usuário.
O ministro Dias Toffoli pediu vista quando a votação estava em cinco (Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Rosa Weber e Luís Roberto Barroso) a favor da permissão de uma quantidade mínima para uso pessoal e três contrários (André Mendonça, Cristiano Zanin e Nunes Marques).
Na prática, a Corte está discutindo a redução de mortes em comunidades dominadas pelo tráfico e a diminuição do racismo estrutural da nossa polícia e nossa Justiça que já define, na maioria das vezes, negros como traficantes e brancos como usuários.
Sob a justificativa de que há um atropelamento de competência pelo Poder Judiciário, grupos no Congresso Nacional querem correr com uma proposta que criminalize mesmo uma bituca que produza menos de um peido de fumaça para anular uma eventual decisão do STF. A proposta prevê a separação de traficantes e usuários (como vai fazer isso, ignorando o debate em curso no STF, eu não sei) e prevê penas alternativas, além de mandar usuários para tratamento. Dá arrepios imaginar a interpretação criativa de alguns juízes de primeira instância a partir disso...
Por conta de um diálogo entre o presidente da Corte, ministro Barroso, e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, o trâmite deve esperar o fim da votação - que, agora, está suspensa por 90 dias. Mas o risco de um novo retrocesso está ali, na esquina.
Se a Corte confirmar a tendência, teremos dado um passo, ainda que pequeno, contra a falida guerra às drogas - que produz, anualmente, montanhas de mortos pelas narcomilícias e em chacinas policiais em série - como as que ocorreram em São Paulo, na Bahia e no Rio nos últimos tempos - sem conseguir reduzir o consumo de psicoativos.
Pequeno passo, claro, considerando que a questão está bem mais avançada em outros lugares. Para além dos Estados Unidos, que liberou o consumo de maconha até em sua capital Washington DC e em sua maior cidade, Nova York, podemos colocar também Uruguai, Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, México e Peru, para falar apenas da nossa América Latina. Mas o Brasil é especial, né? Afinal, sem esse instrumento, como justificar a contenção de comunidades pobres?
As maiores batalhas do tráfico sempre acontecem longe dos olhos das classes média e alta, uma vez que a imensa maioria dos corpos contabilizados é de jovens, negros, pobres, que se matam na conquista de territórios para venda de drogas, pelas leis do tráfico e pelas mãos da polícia e das milícias. Os mais ricos sentem a violência, mas o que chega neles não é nem de perto o que os mais pobres são obrigados a viver no dia a dia.
Considerando que policiais, comunidade e traficantes são, não raro, de uma mesma origem social e, não raro, da mesma cor de pele, é uma batalha interna. E muita gente torce não para resolver o problema em definitivo, mas para que os conflitos voltem a ser contidos naquele território, gerando falsa sensação de segurança na parte "civilizada" da cidade.
A forma como o tráfico se organizou e a política adotada pelo poder público para combatê-lo estão entre as principais razões desse conflito armado organizado. Sim, o combate ao tráfico gera mais mortos que o consumo de drogas - até porque a droga que, estatisticamente, mais mata e provoca mortes se chama álcool. Você pode comprá-la no supermercado ou ver sua propaganda na TV. Mas ela não é proibida, apenas regulada. Tal como o tabaco.
Não há saída para a violência armada organizada que não passe pela discussão da interrupção da atual política, o que passa pela descriminalização e legalização dos psicoativos, estrangulando os recursos que chegam às mãos das organizações criminosas. E menos recursos para elas significa menos morte nas periferias.
Se o Estado brasileiro quisesse resolver a bomba-relógio do sistema carcerário, descriminalizaria e legalizaria paulatinamente uma série de drogas, começando pela maconha. Isso quebraria as pernas do tráfico, reduzindo o número de jovens que hoje são enviados aos presídios para aprender a roubar e matar e desidratando o poder econômico das facções criminosas.
Assumir um planejamento legal e de saúde pública (sim, drogas deveria ser tratada sob esse enfoque e não o do xilindró) para a legalização e a regulamentação, desidratando o tráfico de drogas e o tráfico de armas através do fim de seu mercado ilegal seria importante para reduzir as mortes.
Muitos acreditam que desconectando os presídios do restante do tecido social, tornando-os uma espécie de limbo para onde vai quem atentou contra a sociedade, tudo será resolvido. O aprendizado de presos durante sua estada no inferno, por tudo o que viram e viveram, será levado para fora. E quem sofre as consequências dessa política burra somos todos nós.