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Presenteado por João Paulo 2º, morador do Vidigal diz que visita do papa mudou imagem das favelas do Rio

Hanrrikson de Andrade

Do UOL, no Rio

08/07/2013 06h00

Na manhã do dia 2 de julho de 1980, dia em que moradores da favela do Vidigal, na zona sul do Rio de Janeiro, disputavam cada centímetro das ruas, becos e vielas da comunidade a fim de ver de perto o papa João Paulo 2º, Armando de Almeida Lima, 71, vivenciou o que hoje descreve como "a maior alegria de sua vida".

Na visão do ex-líder comunitário, a visita de um papa a uma comunidade carente do Rio representou o início de uma série de transformações em relação à dialética entre o morro e o asfalto. "Quando o papa disse que não estava no Vidigal por curiosidade, e sim porque nos amava, os moradores sentiram que não eram tão invisíveis assim. A vinda dele fez com que a imagem das favelas começasse a mudar. Aos poucos, as pessoas foram descobrindo que há gente de bem na favela", afirmou.

No dia 25 de julho deste ano, moradores da comunidade conhecida como Varginha, no Complexo de Manguinhos, na zona norte, terão uma oportunidade semelhante com a visita do papa Francisco, que chegará ao Rio para a Jornada Mundial da Juventude, a ser sediada entre os dias 23 e 28 de julho.

"Esse papa argentino parece ter a mesma filosofia do João Paulo 2º. Acredito que a visita dele lá em Manguinhos também vai ser muito produtiva para os moradores. Todo mundo quer estar perto do papa", afirmou o morador do Vidigal, que diz "estar velho" para tentar se aproximar novamente de um pontífice: "Vou ver tudo pela TV. Não tenho mais idade".

Então presidente da associação de moradores, ele foi responsável por guiar o polonês Carol Voitila até a capela construída para a visita do pontífice. Durante o trajeto, porém, João Paulo 2º quebrou o protocolo, e entrou na casa da mãe de Lima, a dona Elvira, como era conhecida no Vidigal.

O ex-líder comunitário teve que se desvencilhar de policiais do Vaticano para entrar no barraco, que hoje não existe mais. "Me larga que essa é a casa da minha mãe", afirmou ele ao segurança que o puxava pelo braço.

CAPELA S. FRANCISCO DE ASSIS

  • Antônio Scorza/UOL

    Os moradores realizaram um mutirão para que as obras da capela São Francisco de Assis fossem concluídas a tempo de receber o pontífice. O fato foi lembrado pelo papa em seu sermão: "Falaram-me também do mutirão, graças ao qual ficou pronta a capela que daqui a pouco vou benzer. É sempre lindo e importante que as pessoas todas se unam, se deem as mãos, somem esforços e, juntas, consigam o que sozinhas não podem alcançar"

"Meu filho, eu fui premiada! Que felicidade!", gritou dona Elvira ao ver o filho, ofegante e atônito. Depois de uma breve conversa em português entre o papa, a mãe de Lima e dom Eugênio Salles, então arcebispo do Rio, João Paulo 2º deu dois terços a dona Elvira. Após a morte dela, dois anos depois, um deles ficou com Lima, e o outro com um irmão que mora na região Norte.

Da ameaça de remoção ao tráfico de drogas

Ao argumentar sobre a mudança da imagem das favelas do Rio a partir da visita de João Paulo 2º, em 1980, Lima citou a guerra judicial entre moradores e governo do Estado a respeito da remoção de moradores.

Na época da vinda do pontífice, as autoridades pretendiam derrubar diversos barracos com a justificativa de que havia risco de deslizamentos na avenida Niemeyer.

"Com a visita do papa, a nossa luta ganhou ainda mais força e conseguimos embargar a remoção. (...) Algum tempo depois, descobrimos que já havia uma planta aprovada para a construção de casas duplex de alto luxo na avenida Niemeyer. Eles queriam fazer uma remoção branca", explicou ele.

"Ele [João Paulo 2º] deu a força que a gente precisava para suspender definitivamente o fantasma das remoções", afirmou. No dia seguinte à visita do papa, Lima e os demais líderes comunitários receberam uma orientação do advogado da associação de moradores: aproveitar a visibilidade para pressionar o governo.

A FAVELA DESCEU

ERBS JR./Frame/Estadão Conteúdo
Na década de 80, a luta dos moradores do Vidigal era contra as remoções. Após um longo período em silêncio, principalmente em razão das leis impostas pelo tráfico de drogas, a comunidade da zona sul do Rio voltou a expor a sua insatisfação com o poder público. No dia 25 de julho, em meio a uma onda de protestos que tomou conta da cidade, cerca de mil pessoas do Vidigal e das favelas vizinhas, Rocinha e Chácara do Céu, realizaram uma manifestação conjunta para cobrar do governo estadual melhorias em relação ao saneamento básico, ao transporte público e à educação.

"Em 20 dias, o governo cedeu e assinou a desapropriação", lembrou Lima. "Pedi muito a Deus e rezei com o terço [dado a ele por João Paulo 2º]. Essa foi uma vitória que saiu daqui e se espalhou por outras comunidades. Antes, tínhamos apenas barracos nas favelas. Aos poucos, serviços como água e esgoto começaram a chegar. A favela começou a ter urbanização. Nada disso aconteceria sem a visita do papa."

Foi também durante os anos 1980, no entanto, que o tráfico de drogas se expandiu pelas favelas da capital fluminense, principalmente em face do crescimento exponencial da facção Comando Vermelho, que teve origem dentro do antigo presídio de Ilha Grande, no litoral fluminense --a quadrilha era chamada inicialmente "Falange Vermelha", e surgiu da aproximação entre criminosos comuns e presos políticos.

Roteiro do papa no Vidigal

A visita de João Paulo 2º ao Vidigal durante cerca de uma hora e quarenta minutos, de acordo com Lima, 40 minutos a mais do que havia sido acordado entre ele, representando a associação de moradores, e a Arquidiocese do Rio de Janeiro em conjunto com a delegação do Vaticano.

A entrada do pontífice em um dos barracos da comunidade já estava prevista. Mas Lima não esperava que o acaso faria com que a casa escolhida fosse justamente a de dona Elvira.

"Minha mãe foi realmente abençoada. O papa entrou no barraco dela por engano. A ideia era que ele entrasse em uma outra casa, perto da capela, mas estava uma grande confusão ali", explicou. "As pessoas não abriam espaço. Então, ele caminhou um pouco e entrou justamente na casa dela [dona Elvira]."

Desejei visitar em vocês do Vidigal, todos os favelados onde quer que se encontrem, no dileto Brasil, que agora percorro em peregrinação apostólica. Ao vir aqui, interessai-me, como Pai e Pastor, preocupado pela sorte de filhos multo amados, e perguntei sobre todos e sobre tudo aqui nesta favela. Falaram-me de vocês e como no meio de carências, lutas e agruras, há solidariedade e ajuda mútua entre todos, graças a Deus. (...) Regozijo-me com quantos, direta ou indiretamente, na área desta favela, conseguiram resolver, de modo justo e pacífico, questões que, arrumadas, não deixarão de contribuir para fazer a vida de todos mais inumana e para tornar esta cidade maravilhosa sempre mais cidade de irmãos. Vim aqui, não por curiosidade, mas porque amo vocês e lhes quero bem (...)

Trecho do discurso original do papa João Paulo 2º durante a visita ao Vidigal

"Ela me abraçava e não parava de chorar. Ela disse que, se pudesse, jamais varreria o lugar que o papa pisou dentro do barraco", disse.

Antes de conhecer dona Elvira, João Paulo 2º havia feito o Sermão da Montanha na capela construída especialmente para a visita. "Ela era toda de madeira e foi construída meio que depressa. Lembro até hoje quando ele ficou abraçado a uma das pilastras, olhando com carinho para o coral de crianças catando Ave Maria. Foi ali que ele disse que estava no Vidigal porque nos amava, e não por curiosidade", afirmou.

Segundo Lima, na incursão pela favela, que teve início em um dos acessos pela avenida Niemeyer, João Paulo 2º dizia-se surpreso ao ver como as pessoas conseguiam sobreviver em "condições tão pobres", e perguntava aos moradores quantas pessoas moravam em suas respectivas casas. "Em uma moravam cinco. Em outra, dez. Ele parecia não acreditar", disse.

Anel episcopal, o presente do papa

Ao deixar a favela, João Paulo 2º presentou a paróquia local com o seu anel episcopal, com 21 gramas de ouro, que posteriormente se tornaria objeto de polêmica. Isso porque o pontífice entregou o objeto a um religioso que pensava ser o pároco da favela. Na verdade, tratava-se de um dirigente da Arquidiocese do Rio.

"Foi uma grande disputa para ver quem ficaria com o anel. Se ele ficaria na favela ou com a Igreja Católica. Uma emissora de TV chegou a propor que fizéssemos um leilão, mas recusamos", lembrou Lima.

O anel original ficou temporariamente na Igreja de Santa Mônica, no Leblon, mas a associação de moradores --convencida de que não havia segurança no local para guardar um item tão precioso-- optou por doá-lo ao Museu de Arte Sacra. "Com a condição de que o anel viria ao Vidigal sempre que tivéssemos alguma festa ou celebração. Não podíamos abrir mão disso", disse.

RETOMADA DO TERRITÓRIO

  • Rafael Andrade/Folhapress

    Em novembro de 2011, com o apoio do Exército brasileiro, as forças de segurança do Rio de Janeiro ocuparam as favelas da Rocinha, do Vidigal e da Chácara do Céu, na zona sul da cidade, para a instalação de UPPs nessas comunidades. A operação acabou com o domínio de uma das principais facções criminosas do Rio, a ADA (Amigos dos Amigos), que era chefiada por Antônio Bonfim Lopes, o "Nem", preso no decorrer da ação. Atualmente, ainda há relatos sobre a atuação de traficantes de drogas na região.

Segurança pesada

O esquema de segurança para a visita do papa ao Vidigal também é lembrado com detalhes pelo ex-líder comunitário. Segundo ele, Exército e Polícia Federal posicionaram soldados e agentes em todos os acessos ao morro, e muitos moradores foram previamente investigados, em especial os que lutavam contra a remoção.

IGREJA X REGIME MILITAR

  • Gil Passarelli/Folhapress

    No fim dos anos 1970, pouco antes da visita do papa, a relação entre o regime militar e a Igreja Católica não era das melhores. O chamado clero progressista se posicionava publicamente contra os abusos de autoridade cometidos durante a ditadura. No exterior, o cardeal dom Hélder Câmara (foto) denunciou diversos casos de tortura de presos políticos

"Naquela época, nós estávamos batendo de frente com a ditadura militar. Foi a primeira vez que a favela enfrentou o regime", afirmou.

Durante o trajeto do pontífice, policiais chegaram a retirar uma senhora que supostamente teria planejado jogar água em João Paulo 2º. "Não sei se ela falou brincando ou não, mas a polícia não quis nem saber", disse.

O cartunista Ziraldo, que havia se hospedado dias antes na casa do músico e escritor Sérgio Ricardo para acompanhar a visita do papa, foi obrigado a deixar a favela. O jornalista foi um dos fundadores de "O Pasquim", jornal que fazia oposição ao regime militar. "No dia seguinte, o Ziraldo fez uma charge 'descendo o pau' na segurança do papa', afirmou Lima.