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Como a rigidez sobre demonstrações de afeto influencia o trabalho da PM nas ruas?

O soldado Leandro Barcellos Prior, da PM de SP, foi filmado dando um "selinho" em outro rapaz no metrô e passou a receber ameaças de morte - Reprodução/Facebook
O soldado Leandro Barcellos Prior, da PM de SP, foi filmado dando um 'selinho' em outro rapaz no metrô e passou a receber ameaças de morte Imagem: Reprodução/Facebook

Janaina Garcia e Luís Adorno

Do UOL, em São Paulo

13/07/2018 04h00

A repercussão dos últimos dias sobre a divulgação das imagens do soldado Leandro Prior - que foi filmado sem seu consentimento - dando um selinho em um amigo no metrô de São Paulo revelou que o código disciplinar da Polícia Militar pode ver como afronta “à moral e aos bons costumes” e ao decoro da atividade gestos que facilmente poderiam soar, a qualquer civil, como simples afeto. O soldado passou a ser vítima de ameaças por telefone e redes sociais. Para especialistas em segurança ouvidos pelo UOL, entretanto, enrijecer relações pode afetar negativamente a qualidade do trabalho dos policiais nas ruas e distanciá-los do cidadão.

Segundo o corregedor-chefe da PM paulista, coronel Marcelino Fernandes, o órgão puniu, desde 2001, quatro policiais - um deles, duas vezes - envolvidos em cinco atos “ofensivos à moral e aos bons costumes”. Fernandes classificou os casos como “situações similares” às do soldado, ainda que, em todas elas, embora fardados, os policiais (todos homens) se relacionassem com mulheres.

Em um dos casos, de julho de 2004, um soldado foi punido com quatro dias de reclusão por ter trocado beijos e abraços “com uma ex-namorada” dentro de um ônibus. Ele foi flagrado por um oficial, que também era passageiro. Em junho do ano seguinte, outro soldado, fardado e de folga, também viajando de ônibus, foi “surpreendido por um superior hierárquico” trocando “carícias (beijos e abraços)” com uma mulher. Para a Corregedoria, essa “maneira inconveniente” de o PM se portar acabou “ferindo a imagem da corporação” e gerou uma ‘transgressão grave” a ele.

Em outro caso, um mesmo policial, também soldado, foi punido duas vezes: em 2004, com cinco dias de reclusão, ao ser visto, fardado, aos beijos e abraços com uma “civil branca”. Em 2006, ele pegou um dia de reclusão por ter “cumprimentado com beijos no rosto algumas policiais militares femininas”, o que contrariou o disposto da corporação que prevê que “não se admitem, em lugar sujeito a administração militar, ou por parte do militar fardado, qualquer que seja o local, cumprimentos constituídos de gestos de intimidade como beijos e carícias faciais".

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O quinto e último caso elencado pela Corregedoria, e também o mais antigo, registrado em 2001, é o de um soldado que foi visto fardado “aos beijos e abraços com uma moça” em frente ao batalhão onde ele trabalhava. Como o policial não mudou a atitude mesmo com o comandante à vista --“ofendendo, dessa forma, a moral e os bons costumes” --, foi punido com quatro dias de reclusão.

"Enrijecer relações impede imagem humana da polícia"

Para especialistas em segurança ouvidos pelo UOL, tanto civis quanto militares, o rigor do código de conduta da polícia sobre demonstrações de afeto a PMs fardados mais prejudica que ajuda a fortalecer a imagem da corporação perante a comunidade.

“O que coloca em risco a imagem da corporação é proibir esse tipo de comportamento. As relações humanas também são feitas das mais simples demonstrações de afeto, e isso vale para qualquer pessoa –desde que consensual”, observou o tenente-coronel da reserva Adilson Paes de Souza. “Se o carinho é consensual, é afeto, acolhimento, respeito –e tenho certeza que proibir isso significa enrijecer as relações interpessoais e causar um distanciamento do policial com o meio em que ele vive, o que estimula, por consequência, uma frieza no trato com o outro”, avaliou.

Estudioso da defesa dos direitos humanos e crítico da violência policial, Souza ainda ponderou que o estímulo a um policial de trato mais impessoal “pode ser perigoso”. “Porque as PMs no Brasil, em especial em São Paulo e no Rio, já possuem elevados índices de letalidade e de violação de direitos humanos”, assinalou. “Talvez esse rigor excessivo seja a ponta de um iceberg que explique isso.”

O tenente-coronel, hoje na reserva, relatou ele próprio já ter cumprimentado outros oficiais, homens e mulheres, de forma mais próxima, com beijo no rosto ou abraço, sem que tenha sido punido por isso. Por outro lado, Souza lembrou de um episódio ocorrido na Academia do Barro Branco, onde os oficiais da PM-SP são formados, em 1983, durante a ditadura militar. Ali, relatou, um dos formandos casados pegou o filho recém-nascido no colo.

“Um major que tinha a fama de ser muito rígido afirmou que ‘militar não pode carregar pacote’. Aquilo gerou um mal-estar enorme na academia, a ponto de outros oficiais tentarem amenizar. O que me parece é que esse tipo de ditadura ainda não acabou, não rompemos, ainda, com esse passado. É como se eu ouvisse os ecos de 1983 cada vez que eu ouço que um ato de afeto ‘ofendeu a honra e os bons costumes’”, lamentou.

Em que medida um PM demonstrar afeto em público afetaria a rotina funcional dele? “Na realidade, a função do policial é bastante estressante, com elevados índices de suicídio. Enrijecer relações é evitar que esse quadro mude e também impedir que a comunidade tenha uma imagem positiva e mais humana da polícia”, respondeu o oficial.

"Punição sempre recai sobre praças"

Diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno acredita que a corporação deveria condenar ameaças como as sofridas pelo soldado em São Paulo com a mesma veemência com que ataca manifestações públicas de afeto de PMs fardados.

“A atitude deveria ser condenar as ameaças, e não como esse soldado se portou. De alguma forma, é cultural o cidadão se espantar com um PM fardado demonstrando afeto, mas o anacronismo está no código disciplinar da corporação dar margem a esse tipo de crítica”, afirmou.

Na avaliação da especialista, “brutalizar” o PM pela proibição de demonstrações – mesmo não exacerbadas – de afeto não tem o mesmo crivo disciplinar de quando um policial “é flagrado espancando alguém, por exemplo”.

“No fundo, esse tipo de castigo é usado por superiores que buscam desculpas para punir seus membros, em geral, não oficiais. Não se trata de ser contra a militarização, mas de entender que o código disciplinar existe em uma instituição de castas, o que é muito nocivo e dá margem a esse tipo de situação –a punição sempre recai sobre os praças”, observou.

“O policial é a representação do estado de manutenção da ordem, logo, entende-se que deva ser neutro, imparcial e sem demonstração de afeto. Mas e se esse soldado [Prior] estivesse dando um ‘selinho’ em uma mulher? A questão é o fato de ele ser homossexual, então, essa moralidade quase hipócrita é o que de fato está por trás em um caso particular como esse”, disse.

Corregedor diz que "preconceito é lamentável"

Leandro Prior foi alvo de uma série de ataques de natureza homofóbica depois que a imagem do beijo dado em um amigo foi parar em grupos de WhatsApp de policiais. De sugestões de linchamento a pedidos para que ele deixasse a corporação, o PM precisou se licenciar e levou o caso, via Ouvidoria da PM, para investigação da Corregedoria –onde ele é aguardado para depor na tarde desta sexta-feira (13).

Entre as ameaças, uma teria partido de um militar da Rota, segundo Prior. O militar nega e diz que seu celular foi hackeado. O corregedor da Polícia informou que, caso a apuração traga elementos suficientes, será instaurado um inquérito militar contra o policial da Rota. Se a Corregedoria descobrir que Prior foi ameaçado e difamado por um civil, o caso será enviado ao DHPP (Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa).

Questionado sobre a homofobia relatada pelo soldado, o corregedor disse que isso também está sendo apurado, uma vez que as ameaças teriam sido motivadas por sua orientação sexual. "Ele [Prior] diz que recebeu mais apoio interno do que críticas, inclusive do próprio comandante dele. A sociedade precisa melhorar a cabeça. A gente está no século 21 discutindo essas coisas, como homofobia, racismo, PMfobia, militarfobia. O preconceito é lamentável", disse o coronel Marcelino Fernandes.

A reportagem indagou ao corregedor sobre os casos de natureza homofóbica levados ao órgão, mas foi informada por ele que situações assim são classificadas como “injúrias” e analisadas em um volume não informado de ocorrências.

Para o juiz do TJM-SP (Tribunal de Justiça Militar de São Paulo) Luiz Alberto Moro Cavalcante, a censura à homofobia nesses crimes de injúria classificados pela PM "não chega ao tribunal". No caso específico do soldado Prior, avaliou, a questão é administrativa e, portanto, não compete ao Poder Judiciário.