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Análise: o fim da natureza

Slavoj Zizek

The New York Times

27/12/2010 07h00

Os grandes desastres ecológicos de 2010 se encaixam no modelo cosmológico antigo, no qual o universo é composto por quatro elementos básicos: AR (nuvens de cinza vulcânica da Islândia imobilizando o tráfego aéreo por toda a Europa); TERRA (deslizamentos e terremotos na China); FOGO (que deixou Moscou quase impossível de se viver); ÁGUA (os tsunamis na Indonésia, inundações deslocando milhões no Paquistão).

No entanto, recorrer à sabedoria tradicional não oferece uma visão verdadeira dos mistérios dos caprichos de nossa selvagem Mãe Natureza. É um mecanismo de consolo, realmente, que nos permite evitar a pergunta que todos nós queremos fazer: Outros eventos de tal magnitude surgirão na agenda da Natureza em 2011?

Em nossa era “des-encantada”, pós-religiosa, ultra-tecnológica, catástrofes não podem mais ser consideradas de maneira significativa como parte de um ciclo natural ou como uma expressão da fúria divina. A falta de sistemas de crença comum nos deixa vacilantes, sem as garantias básicas de que, apesar de toda nossa confusão, a natureza continua com seus ciclos eternos de vida e morte. Catástrofes ecológicas _ que podemos ver de forma contínua e em close, graças ao nosso mundo conectado 24 horas por dia _ tornam-se as intrusões sem significado de uma ira cega e destruidora. Mesmo para sobreviventes que podem relembrar todas as inundações e incêndios em sua região voltando atrás uma vida inteira, tudo isso vem como uma revelação _ um cataclismo. É como se estivéssemos testemunhando o fim da natureza.

Nos círculos científicos, desastres “puramente naturais” não existem mais. Mesmo se uma perturbação parece natural na origem, seu impacto é analisado por processos sociais e de percepção; um terremoto não é o mesmo em um deserto, em uma metrópole caótica do Terceiro Mundo ou em uma sociedade altamente desenvolvida e organizada.

É o padrão de sabedoria de que as esferas do homem e da natureza não estão separadas. A novidade é que ambos estão tão inextricavelmente interligados, e com consequências tão imprevisíveis, que, com frequência, não está claro se um desastre é natural ou causado pelo homem.

Ao se classificar as enchentes no Paquistão como um desastre natural, é necessário, no entanto, reconhecer a evidência de causas feitas pelo homem também. O homem vem se impondo no horizonte da imensa região do Himalaia por muito tempo, causando uma degradação visível, vasto desmatamento e o derretimento glacial. Isso significa que as enchentes foram uma estranha mistura de natureza e atividade industrial de larga escala, sendo agregados alguns outros culpados?

Hoje, nós nos voltamos aos especialistas científicos para saber de tudo. Mas eles não sabem tudo, e aí reside o problema. A ciência se transformou em conhecimento especializado, oferecendo uma matriz inconsistente de explicações conflituosas chamadas “opiniões de especialistas”.

Alguns críticos alegam que confiamos demasiadamente no conhecimento científico e ignoramos os instintos viscerais que nos dizem se algo está errado com nossa dependência do conhecimento científico-tecnológico.

O que obtemos agora da ciência, com frequência, soa como a batalha dos livros.

Nos tempos antigos, nós, comuns mortais, tínhamos opiniões subjetivas múltiplas, e víamos a ciência como a esfera do puro fato objetivo. A popularização da ciência tem tido um resultado inesperado: o conhecimento especializado se transformou em um campo inconsistente de múltiplas explicações conflituosas.

Não é surpresa que, uma semana depois que as proibições de voo por causa do vulcão foram levantadas na Europa, o caos foi culpado por uma sequência de opiniões científicas opostas. De acordo com alguns especialistas, as nuvens de cinza vulcânica jamais apresentaram um perigo real. Todo o burburinho foi uma reação de pânico. Outros especialistas alertaram que a proibição de voo foi motivada puramente por interesses comerciais. Em quem acreditar?

Quando os cientistas são os especialistas em ecologia escolhidos pela sociedade, as coisas ficam complicadas. Tantas ameaças ecológicas são geradas pela ciência e tecnologia _ as consequências ambientais da indústria de alta tecnologia, por exemplo, ou as consequências psíquicas da biogenética descontrolada. É muito simplista culpar a ciência moderna. As ciências são uma fonte de riscos, mas também são o meio único que temos de entender e definir as ameaças, uma das fontes de lidar com o perigo e encontrar uma saída.

Se, por um lado, culpamos a civilização científica-tecnológica por muitas de nossas dificuldades, não podemos nos privar da mesma ciência para consertar o dano _ somente os cientistas, afinal, podem “ver” a camada de ozônio. Ou, como diz um verso do Parsifal de Wagner: “A ferida só pode ser curada pelo arpão que a causou”. Não há um caminho de volta à sabedoria holística pré-científica, ao mundo da Terra, Água, Ar e Fogo.

Embora a ciência possa nos ajudar, ela não é capaz, no entanto, fazer todo o serviço. Em vez de nos remeter à ciência para impedir que nosso mundo acabe, precisamos olhar para nós mesmos e aprender a imaginar e criar um novo mundo. Pelo menos para nós, no Ocidente, é difícil aceitar sermos observadores passivos que devem sentar-se e olhar nossos destinos sendo revelados.

Sabemos que vivemos entre ameaças reais, no entanto não acreditamos inteiramente que uma catástrofe acontecerá conosco. Entendemos que não podemos, realmente, influenciar o processo que pode nos levar à ruína _ uma erupção vulcânica, digamos _ mas isso é traumático demais para aceitarmos. Para nos sentirmos melhor, somos direcionados a fazer alguma coisa, qualquer coisa, mesmo sabendo que nossas ações, em última análise, não fazem sentido _ ou, talvez, na esperança de que um milagre varrerá para longe qualquer evento negativo.

Tudo isso sugere, de forma suficientemente irônica, a profunda descrença do nosso século na mudança, desenvolvimento e progresso. Toda mudança radical pode ter a consequência não pretendida de disparar uma catástrofe.

Entre no prazer perverso do martírio prematuro: “Ofendemos a Mãe Natureza, então estamos tendo o que merecemos!” “Ai, pobre de mim! Então é isso, chegou o temido momento!” É um consolo ilusório estar pronto para assumir a culpa para as ameaças ao nosso meio ambiente. Se somos culpados, então tudo depende de nós; podemos nos salvar simplesmente mudando nossas vidas. Reciclamos, frenética e obsessivamente papéis velhos, compramos comida orgânica _ o que seja, desde que tenhamos a certeza de estar fazendo algo, dando nossa contribuição.

Mas, como o universo antropomórfico, magicamente projetado para o conforto do homem, o assim-chamado equilíbrio da natureza, o que a humanidade brutalmente destrói com sua hybris, é um mito. As catástrofes são parte da história natural. O fato de que as cinzas de uma erupção vulcânica modesta na Islândia tenham deixado em terra a maioria dos aviões na Europa é um lembrete muito necessário de como nós, humanos, com o tremendo poder que temos sobre a natureza, somos nada além de uma das espécies vivas na Terra, dependentes do delicado equilíbrio dos seus elementos.

Podemos “fazer o que quisermos” somente até o ponto em que nos mantemos marginais o suficiente para não perturbar gravemente os parâmetros de vida na Terra. Nossa própria sobrevivência depende de uma série de parâmetros naturais estáveis, dos quais nem nos damos conta _ temperatura, a composição do ar, água suficiente e suprimento de energia. Os limites em nossa liberdade _ que as perturbações ecológicas tornam palpáveis _ são o resultado paradoxal do crescimento de nossa liberdade e poder. Nossa crescente capacidade de transformar a natureza pode desestabilizar os parâmetros mais básicos de vida na Terra.

A ciência e a tecnologia não podem mais almejar simplesmente explicar e reproduzir processos naturais; buscam gerar novas formas de vida. Não queremos mais simplesmente dominar a natureza, agora esperamos gerar alguma coisa nova, maior, mais forte que a natureza comum, incluindo nós mesmos.

Na linguagem da ciência moderna, é isto que significa o “fim da natureza”: a vida sintética não como um complemento à natureza, mas como um substituto dela. O objetivo é transformar a vida natural em um componente na “geração” de vida sintética. A ciência pode transformar todos os sonhos de monstros gerados artificialmente e vacas e árvores deformadas em um sonho mais positivo de organismos manipulados geneticamente, “melhorados” conforme desejarmos.

Então, o que pode trazer o futuro? Uma coisa é clara: temos que nos acostumar com um tipo de vida muito mais nomádico. Mudanças graduais ou repentinas no nosso ambiente, sobre as quais a ciência podem fazer pouco mais que dar um alerta, pode forçar transformações sociais e culturais das quais jamais tivemos notícia. Suponhamos que uma nova erupção vulcânica torne um lugar inabitável: onde os habitantes encontrarão um novo lar? No passado, grandes movimentos de população foram processos espontâneos, cheios de sofrimento e perda de civilizações. Hoje, quando armas de destruição em massa estão disponíveis não somente para os estados, mas até mesmo a grupos locais, a humanidade simplesmente não pode contar com uma troca espontânea de populações.

Isso significa que novas formas de cooperação global, que não dependem do mercado ou de negociações diplomáticas, devem ser inventadas. É um sonho impossível?

O impossível e o possível estão simultanamente estourando até se tornar excesso. Nas esferas das liberdades pessoais e da tecnologia científica, o impossível é cada vez mais possível. Podemos entreter a perspectiva de melhorar nossas capacidades físicas e psíquicas; de manipular nossos traços biológicos por meio de intervenções no genoma; de conquistar o sonho tecno-gnóstico da imortalidade, codificando nossos traços de distinção e alimentando o composto de nossas identidades em um programa de computador.

Quando se trata de relações sócio-econômicas, no entanto, percebemos nossa era como uma era de maturidade, e, com isso, de aceitação. Com o colapso do comunismo, abandonamos os sonhos utópicos milenares e aceitamos as limitações da realidade _ ou seja, a realidade sócio-econômica capitalista _ com todas as suas impossibilidades. Não podemos nos engajar em grandes atos coletivos, que necessariamente terminam em terror totalitário. Não podemos nos ater ao antigo estado de bem-estar, que nos torna não-competitivos e gera crise econômica. Não podemos nos isolar do mercado global _ e mais.

Para nós, é mais fácil imaginar o fim do mundo que uma mudança social séria. Prova disso são os numerosos estouros de bilheteria sobre catástrofe global, desde “Eu sou a lenda” até “A estrada” e a visível ausência de filmes sobre sociedades alternativas.

Talvez seja hora de revertermos nosso conceito de o que é possível e o que é impossível; talvez tenhamos que aceitar a impossibilidade da imortalidade onipotente e considerar a possibilidade de uma mudança social radical.

Se a natureza não é mais uma ordem estável com a qual podemos contar, então nossa sociedade deveria também mudar, se queremos sobreviver em uma natureza que não mais é uma mãe que cuida bem, mas uma mãe pálida e indiferente.