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"Bento 16 não soube entender o Islã", diz líder muçulmano, que espera mudança com novo papa

Bento 16 emite sua última mensagem como papa da sacada principal da residência de verão de Castel Gandolfo, no sul da Roma, local onde vai morar pelos próximos dois meses - AFP
Bento 16 emite sua última mensagem como papa da sacada principal da residência de verão de Castel Gandolfo, no sul da Roma, local onde vai morar pelos próximos dois meses Imagem: AFP

Stefan Simons

Do Der Spiegel, em Paris

03/03/2013 06h00

Dalil Boubakeur é um dos muçulmanos mais proeminentes da França. Em uma entrevista para a "Spiegel Online", ele discute o que o papa Bento 16, que está se aposentando, fez de errado na tentativa de criar uma ponte entre muçulmanos e católicos, e como as duas religiões precisam de um novo começo no diálogo inter-religioso.


Dalil Boubakeur está em seu escritório na Grande Mesquita em Paris, onde está servindo chá de hortelã. A mesquita é um exemplo imponente de arquitetura muçulmana, não distante do Sena, e foi construída em 1926 em reconhecimento às tropas coloniais muçulmanas que lutaram pela França durante a Primeira Guerra Mundial.

Boubakeur, que sabe latim e é tão versado na história da Igreja Católica quanto no Alcorão, é um admirador da Alemanha, que ele conheceu depois da Segunda Guerra Mundial. "Eu adoro suas regiões, sua literatura e sua história", diz Boubakeur. Ele pede desculpas por seu alemão meio enferrujado. "Eu não tenho muitas oportunidades de falar alemão", ele diz. "A última vez foi com o papa Bento 16."

ENTENDA O PROCESSO SUCESSÓRIO DO PAPA

Quando o chefe da Igreja Católica renuncia a sua função ou morre, seu sucessor é eleito pelos cardeais reunidos em conclave na Capela Sistina, onde ficam isolados do mundo exterior.

Cinco cardeais brasileiros deverão participar do conclave que se reunirá para eleger o sucessor do papa Bento 16. Segundo a última lista do Vaticano, há um total de 117 cardeais aptos a votar no conclave.

Para poder votar na escolha do papa, o cardeal precisa ter menos de 80 anos. O Brasil tem um total de nove integrantes no Colégio Cardinalício do Vaticano, mas quatro deles já ultrapassaram a idade limite.


Spiegel Online: Sua Santidade, o papa Bento 16, renunciou no dia 28 de fevereiro. O que  senhor deseja do futuro pontífice?

Boubakeur: Uma reversão. O cristianismo sob o papa Bento 16 começou a se tornar mais doutrinário. Ele não foi capaz de entender os muçulmanos. Ele não tinha nenhuma experiência direta com o Islã e não encontrou nada positivo para dizer sobre nossas crenças.

Spiegel Online: O senhor encontrou Bento 16 durante a visita dele a Paris em 2008. Que impressão ele deixou durante as discussões pessoais entre vocês?

Boubakeur: Bento 16 era tímido, reservado, o resultado de uma criação rígida, tradicional –amistoso, mas sempre mantendo uma distância.

Spiegel Online: No Dia Mundial da Juventude em Colônia, em 2005, apenas poucos meses após ter sido eleito, o papa disse que o diálogo inter-religioso entre cristãos e muçulmanos não deveria ser um extra opcional. As palavras dele foram seguidas por ações?

Boubakeur: Não, não foram. Elas provaram ser palavras vazias, um fato que eu lamento profundamente. E seu discurso em setembro de 2006, na Universidade de Regensburg, apenas aprofundou minha decepção.

Leia mais sobre a renúncia

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Spiegel Online: Naquele discurso, Bento 16 citou o imperador bizantino Manuel 2º Paleólogo, dizendo: "Mostre-me o que Maomé trouxe de novo e encontraremos apenas coisas más e desumanas, como sua ordem para espalhar pela espada a fé que ele pregava". O que o senhor pensou na época?

Boubakeur: Eu sabia que se tratava de uma palestra diante de estudantes e professores, de modo que ele estava transmitindo uma mensagem educativa. Mas ela foi moldada por uma abordagem datada do relacionamento entre o cristianismo e o Islã.

Spiegel Online: Isso causou rebuliço no mundo muçulmano, protestos nos países árabes e ataques contra cristãos no Oriente Médio.

Boubakeur: Compreensivelmente. As decisões do Concílio Vaticano Segundo de diálogo inter-religioso pareciam ter sido esquecidas, e nós voltamos ao relacionamento que foi descrito como a "polêmica muçulmano-cristã". Para mim, pareceu um retorno aos primórdios, quando a Igreja Cristã julgava o Islã como sendo uma heresia.

Spiegel Online: Permaneceu alguma amargura?

Boubakeur: Foi errado lembrar às pessoas sobre os conflitos entre o cristianismo e o Islã, daqueles confrontos que duraram séculos. Ao fazê-lo, Bento abriu espaço para uma interpretação dogmática, enganadora.

Spiegel Online: É preciso permitir críticas. O papa lembrou às pessoas sobre liberdade religiosa, quando os cristãos nos países árabes estavam sendo discriminados e perseguidos.

Boubakeur: Sim. Mas às vezes essa exposição vem carregada de islamofobia, quando a crítica faz uso de termos que costumam ser disseminados pelos oponentes do Islã. Bento 16 repetiu o que lhe disseram, mas sem compreensão pessoal. Onde estava a conversa sobre irmandade?

Spiegel Online: O papa alemão foi mais um fiscal da pureza teológica do que um pastor?

Boubakeur: Bento 16 sem dúvida foi profundamente influenciado por seu trabalho como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cargo que ele exercia antes de sua eleição (ao papado) em Roma. Aquele era seu papel, sua função, sua missão.

Spiegel Online: Uma de suas muitas publicações é intitulada "The Shock of Religions: Jews, Christians, Muslims –is Coexistence Possible?" ("o choque de religiões: judeus, cristãos, muçulmanos –a coexistência é possível?" em tradução livre). No livro, de 2004, o senhor respondeu a questão positivamente. E hoje?

Boubakeur: A resposta ainda é a mesma. Mas é preciso que, para a coexistência em uma sociedade, as religiões se sintam comprometidas com os mesmos valores. Apenas quando nenhuma crença individual receber tratamento preferencial é que existirão as condições para uma verdadeira democracia e uma coexistência livre de conflitos. Assim, com um novo papa, é possível torcer por um novo começo para o diálogo entre as religiões.