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De olho na adesão à UE, Sérvia vira "mocinho" na crise de refugiados

Migrantes e refugiados, entre eles várias crianças, esperam para cruzar a fronteira entre a Sérvia e a Croácia, em Berkasovo (do lado sérvio) - Elvis Barukcic/AFP
Migrantes e refugiados, entre eles várias crianças, esperam para cruzar a fronteira entre a Sérvia e a Croácia, em Berkasovo (do lado sérvio) Imagem: Elvis Barukcic/AFP

Gabriel Bonis

Colaboração para o UOL, em Salônica (Grécia)

04/11/2015 06h10

Enquanto outros países dos Bálcãs agem com truculência, e Hungria fecha suas fronteiras, Belgrado recebe refugiados e tenta limpar imagem dos anos 1990

Com o colapso da antiga Iugoslávia, uma série de guerras se desencadearam nos Bálcãs nos anos 1990, e o envolvimento da Sérvia nesses conflitos parecia ter manchado a imagem internacional do país de forma permanente.

Diversos personagens sérvios importantes, como o ex-presidente Slobodan Miloševic, foram acusados formalmente de crimes contra a humanidade pelo Tribunal Criminal Internacional para a Antiga Iugoslávia. Entre os casos mais marcantes, estava o genocídio de Srebrenica, na Bósnia-Herzegovina, quando tropas sérvio-bósnias massacraram oito mil homens muçulmanos.

Vinte anos se passaram desde Srebrenica e agora, em vez de uma guerra civil em seu continente, a Europa enfrenta uma grave crise de refugiados. Segundo o Acnur, a agência da ONU para refugiados, mais de 644 mil refugiados e migrantes chegaram à Europa desde o início de 2015. É neste contexto que, inesperadamente, a Sérvia surgiu como um destaque positivo.

Ao contrário de Macedônia e Hungria, a Sérvia tem mantido suas fronteiras abertas para refugiados que transitam pelo país rumo à União Europeia (UE). Belgrado também assumiu o compromisso de tratá-los com dignidade enquanto estiverem no país. Ambas as medidas têm apoio popular.

Em setembro, um alto comissário da UE elogiou a gestão sérvia da crise definindo-a como “competente” e “alinhada com padrões internacionais”.

Mas como a Sérvia passou de um país acusado de instigar conflitos étnicos nos anos 1990 para um exemplo positivo em uma crise humanitária, mesmo sob o comando do primeiro-ministro Aleksandar Vucic  --um ex-ultra nacionalista que afirmou perante câmeras que “para cada sérvio morto [na Bósnia], mataremos 100 muçulmanos”?

A resposta envolve diversos fatores, sendo um dos principais a candidatura da Sérvia para ascender à UE.

“Como candidata a se juntar ao bloco, a Sérvia precisa provar que está preparada para agir conforme valores europeus de tolerância e abertura --embora esses mesmos valores estejam sob pressão”, avalia Susan Fratzke, analista política do Instituto de Políticas de Migração, em Washington, nos EUA.

“O esforço sérvio pode ser visto como um compromisso com esses princípios”, completa.

O governo não refuta completamente esse cenário, mas prefere destacar que a posição amistosa é um ato de solidariedade, não de política.

“O posicionamento da Sérvia é importante para o acesso à União Europeia. Podemos dizer que passamos no teste e que respeitamos os direitos humanos, mas não forçamos a população a agir desta forma, ou se tem solidariedade ou não”, defende Ivan Miškovic, porta-voz do Comissariado para Refugiados e Migração da Sérvia.

Segundo Miskovic, o desempenho positivo do país na atual crise humanitária está relacionado ao preparo realizado por Belgrado desde o início de 2015.

“Em maio, o governo formou um grupo ministerial para lidar com a crise. Foram estabelecidos os centros de transição e de registro, acomodação, distribuição de itens como alimentos, entre outras coisas.”

Endurecimento da Hungria

A Sérvia é fundamental na rota para o norte da Europa. Em geral, a jornada europeia dos refugiados começa na Turquia ou na Grécia, passando pela Macedônia antes de chegar à Sérvia. De lá, atualmente, eles entram na UE pela Croácia. Até o início de setembro, a Hungria era o ponto de entrada mais comum.

As autoridades húngaras, porém, fecharam suas fronteiras com a Sérvia e a Croácia para evitar a entrada de refugiados.

Além disso, o governo de Viktor Orbán, primeiro-ministro conservador, conseguiu aprovar leis que tornam uma ofensa criminal atravessar ou danificar as cercas construídas na fronteira com a Sérvia. A travessia ilegal agora pode render uma punição de até três anos de prisão.

Orbán é uma figura polêmica na UE, criticada por organizações de direitos humanos e outros líderes do bloco.

Ele já declarou, por exemplo, que a crise de refugiados é um problema apenas da Alemanha e acusou a chanceler alemã, Angela Merkel, de “imperialismo moral” ao tentar impor a sua visão liberal ao resto da Europa.

O premiê húngaro chamou recentemente os refugiados de “exército” e destacou que a maioria deles é muçulmana, o que, para ele, seria um problema em uma Europa de “cultura e raízes cristãs”.

Em setembro, Budapeste não hesitou em usar canhões de água e a polícia contra refugiados vindos da Sérvia, um episódio que até mesmo Aleksandar Vucic definiu como “brutal”.

A Macedônia, que fechou brevemente suas fronteiras em agosto, também agiu de forma semelhante naquele mês, na fronteira com a Grécia.

“A Sérvia não foi truculenta porque ONGs, o Acnur e outros atores relevantes ajudaram o governo a adotar uma posição amigável aos refugiados”, acredita Bogdan Krasic, do Centro para Direitos Humanos de Belgrado.

Livre da pressão da EU

Nesse contexto, a posição Sérvia contrasta com a de outros Estados dos Bálcãs e do Leste Europeu. Algo que pode ser explicado, em parte, pelo fato de o país não estar sujeito às mesmas pressões dos membros da UE.

“Ao contrario da Hungria, que enfrenta riscos realistas de retornos por meio da Regulação de Dublin, a Sérvia é apenas um país de trânsito sem maiores obrigações”, avalia Krasic.

Fora da UE, Belgrado está isento de aceitar, por exemplo, as cotas para reassentamento de 120 mil refugiados aprovadas pelos ministros do Interior do bloco no final de setembro. Ainda assim, a Sérvia manifestou interesse em participar das cotas.

“Como candidato ao bloco, Belgrado tem a obrigação de alinhar suas políticas de asilo e migração com os padrões e requerimentos da UE”, explica Susan Fratzke.

O governo sérvio oferece cerca de três mil vagas de acomodação em centros de transição, em cinco centros permanentes e em 30 centros temporários nas rotas de entrada e saída dos refugiados no país. Mas, na maior parte do tempo, esses centros ficam quase vazios pois os refugiados tentam seguir viagem rapidamente.

Segundo Miškovic, eles costumam passar apenas uma noite nestes locais para receberem alimentos e recarregarem seus aparelhos celulares, antes de seguirem para a Croácia. Eles temem novos fechamentos de fronteiras ao norte.

Apesar de a resposta humanitária da Sérvia ter sido elogiada pela UE, existem problemas. Um levantamento do Centro para Direitos Humanos de Belgrado com mais de 100 refugiados mostra que aqueles que decidiram permanecer no país (mesmo em número modestos) enfrentaram grandes dificuldades em seus pedidos de asilo.

“O sistema de asilo é extremamente ineficiente e muitas medidas são designadas para desencorajar esses pedidos”, afirma Krasic.

Relatórios do Conselho Europeu para Refugiados e Exilados (ECRE, na sigla em inglês) corroboram a opinião do ativista. O conselho aponta que, na região de Presevo, faltam mecanismos efetivos para identificar corretamente os refugiados mais vulneráveis. Isso inclui crianças desacompanhadas, que possuem risco elevado de serem vítimas de tráfico humano.

Segundo a organização, esse cenário ocorre também por falta de capacidade para acomodação e registros de refugiados na Sérvia, o que já forçou dezenas de refugiados a passarem a noite ao relento (e no frio) em Presevo.

Mesmo com altos níveis de desemprego (17,9% em junho, segundo o Banco Mundial) e uma economia em dificuldades, a população sérvia não tem se mostrado relutante em dar assistência aos refugiados. Muitos deles são refugiados dos conflitos nos Bálcãs, o que desperta um sentimento de empatia.

“Isso ajudou a criar uma atmosfera melhor de compreensão sobre os refugiados já que muitas pessoas haviam passado pela mesma situação. Mas, por outro lado, levantou questões relativas à falta de ajuda governamental para os refugiados sérvios que ainda vivem em centros coletivos”, pontua Krasic.

A UE tem tentado ajudar financeiramente os países dos Bálcãs mais afetados pela crise. Em setembro, Sérvia e a Macedônia receberam 17 milhões de euros (cerca de R$ 73 milhões) do bloco para lidar com os refugiados.

A região ocidental dos Bálcãs já havia recebido mais de 8 milhões de euros (cerca de R$ 34,5 milhões) da Comissão Europeia em 2015, em grande parte por meio de organizações humanitárias como a Federação Internacional da Cruz Vermelha e das Sociedades do Crescente Vermelho.

Tensão

O intenso fluxo de refugiados transitando pelos Bálcãs coloca os países da região mais pobre da Europa sob intensa pressão, trazendo à tona antigas rivalidades. Quando a Hungria fechou suas fronteiras com a Sérvia, Belgrado passou a dirigir os refugiados para a Croácia.

O primeiro-ministro croata, Zoran Milanovic, argumentou que o país deveria equilibrar esse fluxo também com a Romênia e a Hungria.

As tensões escalaram rapidamente, com a Croácia proibindo todos os veículos sérvios de entrarem no país. Em retaliação, a Sérvia baniu a importação de produtos croatas.

Esse é um exemplo de como a situação política pode ser vulnerável nos Bálcãs sob intensa pressão. A vasta maioria dos refugiados não deseja permanecer na Sérvia, na Croácia ou na Eslovênia. Esses são apenas países de transição para Alemanha, Áustria, entre outros. Por isso, governos da região temem o impacto de um eventual fechamento de fronteiras no norte europeu.

Caso isso ocorra, a Sérvia e outros países dos Bálcãs se transformariam em zonas-tampão, uma vez que os refugiados ficariam presos nestes locais sem poderem seguir viagem.

“Uma decisão da Alemanha, da Áustria ou da Eslovênia de fechar suas fronteiras iria absolutamente impactar na capacidade da Sérvia em manter suas fronteiras abertas”, acredita Fratzke. “No momento, a Sérvia não tem capacidade de abrigar, processar ou integrar um influxo substancial de refugiados."

Em 19 de outubro, por exemplo, a imposição de limites diários para a entrada de refugiados na Eslovênia causou problemas nos países vizinhos. Na Sérvia, mais de 10 mil pessoas não puderam entrar na Croácia, que enfrentava superlotação de suas instalações devido à decisão eslovena.

Nesta situação milhares de refugiados ficaram expostos ao frio, sem alimentos, roupas adequadas ou cobertores. No inverno que se aproxima, isso pode ser fatal.

Por isso, uma zona-tampão é um cenário que Miskovic prefere não comentar.

“Os países europeus reagiram à crise cada um de uma forma, mas esse é o momento ideal para mostrarem e colocarem em prática os valores europeus e solidariedade que tanto defendem.”