Eleição de argentino abre portas para papa de qualquer continente no futuro

Juan Arias

A Igreja Católica quebrou um tabu importante, e o papa desta vez saiu da Europa para voar para um dos países do Novo Mundo. Apesar de o cardeal Bergoglio ter sido o que mais votos recebeu no conclave anterior, que elegeu o cardeal Ratzinger, desta vez ninguém teria apostado nele.

Será preciso um pouco de tempo para medir melhor o significado desta eleição, neste momento crucial que vive a igreja, atravessada por escândalos e lutas internas na Santa Sé.

Está claro que os cardeais dispensaram o conselho de eleger um papa jovem, com forças e pulso para se impor à Cúria e às suas lutas internas. Francisco tem quase a mesma idade que Bento 16 tinha quando foi eleito papa, e hoje se dizia que não deveria ser escolhido um papa com tanta idade.

Talvez tenha pesado na decisão dos cardeais que não são da Cúria a biografia em matéria de pobreza de Bergoglio, que escolheu o significativo nome de Francisco.

Os escândalos da banca vaticana haviam sido na semana passada uma das maiores preocupações dos cardeais chegados de fora da Itália, e mais ainda de fora da Europa.

A eleição de Francisco revela que na disputa não ganhou a Cúria, e sim a periferia da igreja, que preferiu abandonar desta vez uma tradição milenar de papas europeus, embora também seja verdade que Bergoglio precisou de votos europeus para ser eleito.

O mais importante na eleição do papa argentino, filho de italianos, é que, a partir desta eleição, que quebrou o tabu geopolítico do papado, as portas ficam abertas para que no futuro o papa possa ser eleito em qualquer outro continente.

 

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Não sabemos se Francisco foi votado com a intenção de ser um papa de transição, como foi a eleição do ancião João 23. Mesmo assim, os papas de transição costumam ser às vezes os mais propícios a deixar abertas as portas, como fez Angelo Roncalli convocando de surpresa o Concílio Vaticano 2º.

Ao novo papa se apresentam desafios mais importantes que os de pôr ordem na Cúria e nas finanças vaticanas: tem pela frente a possibilidade de quebrar outros tabus que a igreja até hoje não conseguiu dobrar.

Basta dar uma olhada nas redes sociais nesses dias do conclave para entender o abismo que existe entre o que os cristãos comuns pensam da igreja e as cenas medievais que estão sendo apresentadas no Vaticano.

E não me refiro aos cristãos rebeldes. São muitos os blogs e redes que abrigam comentários de grupos cultos de cristãos de fé que não conseguem entender por que a Igreja de Cristo continua aprisionada por tantos preconceitos que são alheios à sua tradição original.

Esses tabus estão tão arraigados que chegam a parecer intocáveis. Enroscar-se nesses convencionalismos que contradizem o ritmo do mundo e desconcertam e desanimam milhões de católicos é o que impede a igreja de se abrir para a realidade em que vive.

Uma das superstições da igreja é a de que não pode acompanhar o passo do mundo porque ela vive em outras categorias de tempo. São mistificações que acabaram por fossilizá-la.

Em suas origens, as que estão na raiz de sua existência, a nova igreja que começava a ser concebida sob a inspiração do profeta rebelde da Galileia era exatamente o contrário: adiantou-se a seu tempo, foi rasgadora de tabus.

Os primeiros cristãos foram todos iconoclastas, rebelaram-se contra a tradição e abriram novos caminhos, na maioria das vezes às custas da própria vida.

Com o tempo a igreja foi se revestindo de todos os trajes do poder e se aferrou à defesa da tradição para defender-se do novo que nascia no mundo, corroendo seu poder e abrindo espaços de democracia, liberdade e defesa dos direitos humanos.

Hoje a igreja é a mais atrasada de todas as outras instituições políticas e sociais. Ainda mantém uma monarquia absoluta com o adicional da infalibilidade do monarca.

É a única instituição que continua discriminando a mulher, sem lhe permitir entrar no sacerdócio. Hoje a mulher no mundo civil pode ser tudo, menos sacerdote. Pode sê-lo em outras comunhões cristãs. Até o judaísmo começa a aceitá-las como rabinas nas sinagogas.

A igreja mantém o tabu de seu poder temporal com o papa chefe de Estado e sua tentação de intervir nos assuntos temporais. Sua figura é algo arcaico e que não corresponde à tradição da igreja onde existiam patriarcas regionais, com poderes sobre suas igrejas, que todos se chamavam papa e convocavam seus próprios concílios, e só em momentos de graves conflitos doutrinários ou disciplinares se reuniam para resolvê-los.

Sem tocar um ápice na fé, e menos na fé da primeira comunidade cristã, a Igreja poderia mudar quase tudo. É o que afirmam todos os teólogos modernos. Para voltar a suas origens, a igreja deveria mergulhar mais nas escrituras, que são sua constituição, e menos na teologia escolástica ou nos códigos do Direito Canônico.

Não por acaso, depois do concílio a maioria dos sacerdotes que haviam cursado estudos bíblicos e estudado mais as origens do cristianismo que a teodiceia ou o direito eclesiástico acabaram deixando a igreja. Viam sua estrutura atual mais como uma montagem de poder operada ao longo dos séculos do que como um verdadeiro motor de espiritualidade e de fermento para fazer crescer a esperança do mundo, sobretudo a dos desesperados, a daquela caravana de últimos que foram a primeira igreja do profeta perturbador de sacerdotes e fariseus judeus.

O cristianismo foi fruto de uma heresia, e hoje a igreja se entrincheira em si mesma e em seus dogmas e condena seus melhores teólogos e biblistas sob o medo fantasioso de possíveis novas heresias.

 

Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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