Parentes de vítimas contam suas histórias: "Foi a primeira vez que ele viajou de trem"

Xosé Manuel Pereiro

"Minha filha, minha filha! O que vou fazer sem minha menina?"

Uma mulher com um vestido de verão verde irrompe em soluços, grita e faz tremer a cadeira, apesar do abraço de uma companheira. É o mais clamoroso, mas não o único gemido de dor que se ouve no exterior do edifício Cersia, em um bairro nos arredores de Santiago, onde a Junta da Galícia centralizou informações para familiares das vítimas do acidente ferroviário.

Talvez devido ao cansaço --muitos passaram a noite inteira em hospitais ou viajando para Santiago-- ou à relação silenciosa dos parentes com o fúnebre, o ambiente é dramático, mas calmo. Calmo a pesar de, no interior do edificio, se amontoarem centenas de pessoas, observadas do exterior por dezenas de câmeras.

No Cersia, o típico edifício público multiuso, completamente anônimo até ontem, foram se concentrando os parentes e amigos que não haviam encontrado seus familiares nos hospitais, nem nas listas de feridos graves ou leves ou que receberam alta. Quer dizer, salvo erro, todos os viajantes pelos quais aguardavam notícias tinham morrido, estivessem ou não identificados. No entanto, o gotejar de identificações que se realizava no salão de cerimônias, com a chamada a viva voz dos parentes, era o que provocava a catarse. E a implementação de uma discreta manobra.

As pessoas mais afetadas eram acompanhadas por um dos psicólogos presentes --além dos da Defesa Civil, compareceram tantos ao chamado do Colégio Oficial que foi preciso elaborar uma lista de espera e identificações caseiras--, que os conduziam a escritórios e quartos para consolá-los. No meio da tarde, quando o ritmo de identificações se acelerou e superava a meia centena, começaram a faltar cubículos e tiveram que habilitar salas no andar superior. Em algumas ocasiões, a equipe operacional teve que formar uma barreira com voluntários da Cruz Vermelha e Defesa Civil para preservar a intimidade da pessoa afetada ou ocultá-la com uma manta.

Mas, enquanto no salão de cerimônias não se convocavam os parentes de ninguém, estes tentavam descarregar a tensão aparecendo na varanda do edifício, diante da bateria de câmeras, ou perambulando como nocauteados pelas bem-cuidadas extensões de gramado que rodeiam o edifício. Alguns aceitavam contar sua tragédia à mídia. "É a namorada do meu filho, Laura, que acabava de terminar um mestrado em Madri. Tem 23 anos", começava a chorar uma mulher enquanto um microfone a interpelava.

Outra, com um forte sotaque andaluz, representava uma centena de excursionistas que permaneciam na expectativa no salão, à espera de notícias sobre a situação do pároco da igreja de Santa Teresa de Colmenar Viejo (Madri), José María Romeral. "Há uma espécie de isolamento, como uma pena, porque, embora não lhe tenham dito, estão vivendo sua tragédia", comentava a fiel.

Também haviam se resignado ao pior os três primos de Manuel Suárez Rosende, um agente comercial de A Susana (Santiago), de 57 anos. Apesar de o cadáver de seu parente não ser um dos identificados, não tinham esperanças e, no máximo, se inclinavam ao fatalismo de que fosse um dos irreconhecíveis. O mesmo fatalismo que fez Manuel pegar esse trem e morrer a poucos quilômetros de sua casa. "Ele foi a Madri na segunda-feira, como sempre, por motivos de trabalho. Ia sempre de carro ou avião, mas desta vez disse 'vou de trem'", relatou um dos primos. "Sim", acrescenta outro, "foi a primeira vez que ele pegou o trem".

No interior do Cersia, parentes e amigos tentavam se animar trocando esperanças que uns e outros sabiam ser falsas. O tio de Tomás López Brión contava o caso da turma de Torrevieja (Alicante) que decidiu fazer uma surpresa a seus amigos de Pontedeume (A Coruña) e, na altura de Angrois, chamou por telefone para lhes contar: "Olhem, estamos aqui. Viemos ver vocês!"A conversa foi interrompida bruscamente.

Um mulato de olhos enormes, Edwin Ynoa, voluntário da Cruz Vermelha, estava ajudando na noite de quarta-feira quando soube por telefone que Rosalina Altagracia Ynoa, sua "tia de sangue", havia voltado sem avisar de Santo Domingo e apanhado o trem que seu sobrinho estava vendo completamente destruído.

Também circulavam histórias que confirmam as teorias sobre a existência ou não do destino. A mulher morta que trocou de assento com um rapaz que se salvou. Ou a esposa de um alto funcionário de banco na Galícia que ia passar o feriado com seu marido e já tinha a passagem, mas na última hora decidiu passar alguns dias em Madri. Exatamente ao contrário do caso de Carla Rodríguez Revuelta, diretora da série "Aida", entre outros programas de TV, que decidiu aceitar o convite de uma roteirista de Compostela para passar o feriado em Santiago e voltarem juntas para Madri.

"Quem me diria ontem a esta hora, preparando a mesa e tudo, que estaria aquí? Já me dizia minha mãe: não faça planos, viva o momento", dizia uma das mulheres que cuidavam de outra, completamente abatida, na área onde a organização ofereceu telefones, wi-fi e até carregadores de celular para os parentes. "Está esperando notícias de sua filha, que voltava com o namorado de um cruzeiro. Veja só: barco, avião e se arrebentar ao lado de casa". Tentavam lhe infundir esperança, mas sua amiga não reagia a nenhum estímulo.

A verdade é que os erros atuam contra. Na quarta-feira à noite, uma mulher de Talavera de la Reina (Toledo), às portas do andar de urgências do Hospital Clínico, contava aliviada que, depois de apenas duas horas de incerteza, conseguiu saber que seu marido estava levemente ferido, "alguns cortes e pouco mais". Ontem, por volta de meio-dia, esse passageiro passava a engrossar a lista de mortos. A mulher, com o mesmo vestido e visivelmente destruída, perambulava pelo centro médico seguida de muita gente e agarrada à mão de sua filha, de cerca de 10 anos. "Meu marido morreu", soluçava, contendo a emoção. "Se confundiram com ele, isto foi um caos... Toda a família está aqui. As crianças queriam conhecer o povoado de seus avós, suas raízes, e ele vinha de trem para se juntar a nós."

Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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