Análise: Um novo chefe para uma igreja atormentada pela dúvida

Stéphanie Le Bars

Em Roma (Itália)

A renúncia de Bento 16 exprimiu uma forma de desistência de enfrentar os grandes desafios diante dos quais hoje se encontra a Igreja Católica. Ele deixou para seu sucessor, o papa Francisco, uma instituição fragilizada em diversos níveis: crise de governo, crise de vocações, dificuldade em distribuir a fé católica nas sociedades secularizadas e multiculturais...

Os pontos fracos são facilmente identificáveis. O jesuíta argentino, de 76 anos, deverá enfrentá-los se quiser restaurar a imagem danificada da igreja e devolver credibilidade à sua mensagem.

Atingir a "purificação"

Purificação: Bento 16 havia feito dessa palavra, emprestada do vocabulário espiritual, uma espécie de programa. Ele pretendia promover, por meio desse termo, uma necessária reforma dos comportamentos presentes na Cúria Romana --as "rivalidades" muitas vezes criticadas--, uma exemplaridade ou até uma "santidade" entre todos os pastores da igreja, uma melhor gestão dos escândalos de pedofilia --quiçá sua erradicação-- e um esforço sobre a gestão econômica da Igreja Católica, maculada pela corrupção. A conduta pessoal do papa Francisco, que beira a austeridade e a pobreza, até que é um bom sinal.

MAIS SOBRE O NOVO PAPA

  • Veja frases do papa Francisco

  • Personalidades comentam eleição

  • Anúncio provoca choro e emoção

Dispensar a velha guarda, trocar os nomes, escolher um círculo sólido e irrepreensível e nomear um secretário de Estado incontestável (ao contrário do número dois escolhido por Bento 16) deverão ser as prioridades do novo papa. Dizem que ele é muito bom em ouvir e que possui uma grande capacidade de trabalho e de comando.

Suas origens são uma prova de abertura para o mundo e poderiam favorecer uma maior internacionalização das pessoas encarregadas de administrar o governo da "igreja universal", ainda romana e italiana demais. A chegada de laicos, homens e mulheres, profissionais de seu setor, também permitiria diversificar uma gerontocracia masculina e clerical.

De forma geral, acredita-se que a excessiva centralização do poder deverá ceder lugar à famosa colegialidade entre os bispos que consta nos textos do Concílio Vaticano 2. Reuniões de trabalho mais frequentes, uma maior atenção dada pelo papa aos trabalhos saídos de sínodos temáticos, que muitas vezes abordam com lucidez os problemas da igreja, um conselho regular de "ministros" para acabar com a compartimentalização entre dicastérios: os caminhos para a reforma são conhecidos, mas ainda esbarram na inércia e nas resistências.

O destino do IOR, o "banco do papa", também deverá ser rapidamente determinado pelo novo pontífice. Depois dos escândalos que marcaram sua história, e agora que o Vaticano precisa se ajustar às normas europeias contra lavagem de dinheiro, há quem chegue a questionar a continuidade dessa instituição ou proponha transformá-la em um banco realmente "ético".

Instituir mais transparência

Uma nova direção também passa por mais transparência. O Vaticano não serve para ser uma democracia, mas a cultura do segredo tem os efeitos mais contraproducentes, em termos de rumores ou de acusações anônimas. No entanto, as lições desses últimos meses não parecem ter sido aprendidas ainda. O sigilo imposto às discussões que marcaram o pré-conclave é um exemplo perfeito disso. Embora os temas abordados pelos 115 eleitores dissessem respeito ao futuro da igreja e de seus milhões de fiéis, estes últimos não souberam nada da reflexão deles sobre o estado da igreja.

O novo papa deverá administrar essas contradições entre uma vontade de exposição máxima da igreja na mídia do mundo inteiro, que participa da "nova evangelização", e as resistências de suas instâncias em compartilhar informações.

O desafio da "nova evangelização"

Essa deverá ser a maior preocupação do papa. O assunto não é novo na igreja, que há várias décadas enfrenta a secularização dos países ocidentais e, mais recentemente, a concorrência com o protestantismo evangélico e o islamismo. O pontificado anterior chegou a ver a criação de um dicastério especialmente dedicado a isso.

 

Diante dessa realidade, Bento 16 se dirigiu sobretudo ao coração dos fiéis, pedindo-lhes que aprofundassem sua fé através da reza e da leitura da Bíblia, incentivando-os a se afirmarem mais crentes em um mundo "sem Deus".

Mais espiritual que teólogo, o papa Francisco reavivará essa chama, mas poderá fazê-lo de uma maneira mais pastoral que somente intelectual. Em uma entrevista concedida em 2012 ao jornalista italiano Andrea Tornielli, o cardeal Bergoglio explicou seu "método" de evangelização: "Nós vamos até os parques, rezamos, organizamos missas, batizamos pessoas após um breve preparo. Precisamos evitar a doença espiritual de uma igreja que estaria fechada em seu próprio mundo." As Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ), no final de julho no Rio de Janeiro, no Brasil, serão o primeiro teste para o septuagenário de sua aptidão em falar com as gerações mais jovens.

Mas o futuro da igreja também depende sobretudo da capacidade do papa de atingir os crentes "mornos", as pessoas à margem da igreja ou em busca de transcendência. Um dos desafios da igreja hoje consiste em refazer laços com aqueles que se afastaram por diversas razões: perda de confiança após os escândalos de pedofilia, desejo crescente de autonomia e individualização dos comportamentos, dificuldade em aceitar certos dogmas, discordância sobre os assuntos de moral familiar e sexual…

Deter essa "apostasia silenciosa" é certamente a tarefa mais árdua para o novo papa. Embora a mensagem da igreja sobre a doutrina social, a paz e a justiça, a imigração ou o meio ambiente continue sendo ouvida, mesmo fora do círculo dos crentes, seus posicionamentos sobre a família, a bioética, o lugar das mulheres ou o ministério dos padres continuam sendo pontos de forte tensão. Por mais "moderado" que ele possa parecer, o papa Francisco permanece em uma linha doutrinal tradicional.

Reaproximação com a sociedade

Sobre assuntos que afetam de forma mais imediata a vida dos fiéis, os cardeais eleitores, incluindo o novo papa, compartilham em sua imensa maioria de um perfil "ratzingeriano". As nuances dizem respeito à personalidade e ao estilo de cada um deles. Na linha de seus dois antecessores, Francisco deverá reafirmar o comprometimento da igreja com os valores da família e a defesa da vida, "desde seus inícios até seu fim natural". A igreja argentina se opõe há muito tempo, e com sucesso, à legalização do aborto. Dizem que o novo papa é um pouco mais aberto quanto às questões relativas à moral sexual, inalterada há mais de 40 anos.

Em matéria de contracepção, de aborto e de divórcio, grande parte dos católicos, mesmo os praticantes, está em total descompasso com o ensinamento "ideal" de sua igreja. Para se adaptar minimamente a essas novas realidades, algumas inflexões poderiam ser consideradas, sobretudo quanto à condição dos divorciados que voltam a se casar, até hoje privados da comunhão, ou quanto aos modos de contracepção. Tímidos "avanços" que bastariam hoje para colocar o novo papa no campo dos "reformistas". Recentemente ele chamou de "hipócritas" os padres que se recusavam a batizar crianças nascidas fora do matrimônio.

Será que as aspirações de muitos fiéis quanto a aberturas para a própria vida da igreja têm chances de serem ouvidas? O fim do celibato obrigatório para os padres, o acesso das mulheres ao sacerdócio parecem ainda descartados pela imensa maioria dos dirigentes da Igreja Católica. Apesar da crise de vocações, o acesso ao sacerdócio de homens casados, que já tenham provado suas competências na vida eclesiástica, não está na ordem do dia do Vaticano. No entanto, uma presença reforçada nas paróquias é uma das condições primeiras da evangelização mencionada nos discursos. Por enquanto é difícil dizer se (e como) o papa Francisco abordará essa polêmica questão.

Mas, embora o conteúdo da mensagem continue em grande parte inalterado, é certamente a maneira como o papa se dirigirá às sociedades contemporâneas que pode fazer a diferença. Ainda que ele tenha sido eleito para lembrar aos crentes sobre o ideal de sua doutrina, seu papel como pastor também é preservar a confiança entre seus fiéis e seu clero, às vezes em posição arriscada. A esse respeito, é possível pensar que o papa Francisco conseguirá romper com o ensino estático e teórico do teólogo Ratzinger.

Dialogar com o mundo

O próximo papa, como pastor globalizado de uma Igreja Católica fragmentada, deverá enfrentar, ainda mais que seus antecessores, diferentes culturas e novos modos de comunicação.

Esse diálogo com o mundo também pressupõe relações reforçadas com outras crenças. Embora as conversas com as outras religiões cristãs e com o judaísmo sejam mais de ordem teológica, o diálogo com o islamismo necessita de uma visão clara das questões geopolíticas e dos equilíbrios. Se também sobre essas questões Francisco se inspira em seu modelo São Francisco de Assis, que, no século 13, foi ao encontro do sultão, então o novo papa deverá se mostrar mais partidário do diálogo.

Tradutor: Lana Lim

Receba notícias do UOL. É grátis!

UOL Newsletter

Para começar e terminar o dia bem informado.

Quero Receber

Veja também

UOL Cursos Online

Todos os cursos