Pode a evangélica Marina Silva se tornar presidente do Brasil?
Hélène Jaffiol
-
Adriana Spaca/Brazil Photo Press/Estadão Conteúdo
Marina Silva foi alfabetizada aos 16 anos, e foi formada pelo sindicalismo de Chico Mendes
A fulgurante ascensão de Marina Silva nas pesquisas, após a morte do candidato socialista Eduardo Campos, fez dela a favorita das eleições presidenciais no Brasil (os dois turnos estão marcados para os dias 5 e 26 de outubro). Alguns veem nela um Obama brasileiro, outros um Lula de saias.
Os adversários e a mídia estão fazendo de tudo para impedir sua vitória. Certos argumentos são repetidos incansavelmente, apesar de sua insanidade.
O primeiro deles tenta contestar sua competência, sob pretexto de que ela nunca governou um Estado federado nem administrou uma municipalidade. Só que nenhum dos três últimos presidentes tampouco teve essa experiência: nem Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), nem Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), nem Dilma Rousseff.
Esta última, aliás, jamais havia disputado um cargo eletivo antes de ser escolhida por Lula para sucedê-lo. Em compensação, a carreira política de Marina Silva passou por todos os "degraus": de vereadora a deputada de seu Estado natal (Acre), depois deputada federal, senadora, ministra do Meio Ambiente de Lula durante cinco anos, e por fim candidata à eleição presidencial de 2010, onde seu avanço surpreendeu (20% dos votos no primeiro turno).
O discurso da competência
O discurso da competência faz parte da argumentação tradicional da elite brasileira, que em outros tempos se opunha a Lula. Então é lamentável vê-lo sendo agora repetido pelo Partido dos Trabalhadores, em pânico com as pesquisas depois de ter se desorientado com o movimento de revolta social de 2013.
A posição de favorita de Marina e do PSB, dissidentes da coalizão governamental de centro-esquerda, coloca o PT em uma situação delicada.
Após doze anos do partido no poder, Marina Silva encarna a aspiração por mudança de 80% dos brasileiros, enquanto o PT se encontra na posição dos conservadores, na defensiva, reticente em mudar o que quer que seja.
Entre os argumentos de má fé utilizados por Dilma Rousseff, a comparação de sua desafiante com zebras voluntariosas que não concluíram seus mandatos, como Jânio Quadros (1961) ou Fernando Collor de Mello (1990-1992), é particularmente despropositada. De fato, Collor, que foi obrigado a renunciar por pressão popular devido à galopante corrupção, se tornou um fiel aliado de Lula.
É melhor discutir o programa econômico do PSB, contanto que se admita que o consenso entre os três principais candidatos (Dilma, Marina e o socialdemocrata Aécio Neves) é mais amplo que as correções propostas a uma gestão que não obteve os resultados esperados. Nenhum desses três candidatos contesta os programas sociais, eles só competem com promessas para ver quem faz mais e melhor.
Na verdade, a principal objeção contra Marina Silva é sua fé religiosa, o fato de ela pertencer a uma igreja evangélica, a Assembleia de Deus. Essa rejeição vem tanto das elites quanto do PT (cuja direção, após doze anos no poder, integrou amplamente as classes dirigentes).
Só que todos estão atrás dos votos dos eleitores evangélicos. Dilma Rousseff correu para a inauguração do novo Templo de Salomão, concebido para ser a réplica exata do templo de Israel, construído pela Igreja Universal do Reino de Deus, em São Paulo.
A presidente, que é agnóstica, achou de bom tom citar um salmo: "Feliz é a nação cujo Deus é o Senhor". E não se deve esquecer que Lula conseguiu ser eleito, em 2002, após três derrotas, graças à sua aliança com o vice-presidente José Alencar, cujo partido reunia uma parte considerável do eleitorado evangélico.
Ambivalência católica
A polêmica revela a ambivalência da opinião pública católica, ainda dominante no Brasil (64%), mas seriamente minada pelo avanço das igrejas protestantes (22%).
Quando o general Ernesto Geisel se tornou presidente (1974-1979), ninguém havia ousado contestar sua fé protestante, visto que a ditadura militar ainda era vigilante. Na época ele até encontrou um não-conformista, o cineasta Glauber Rocha, que apostava em sua política de abertura justamente porque o general era protestante.
Toda a história do Brasil, desde a colonização até a República, passando pelo Império, foi marcada por calamidades e horrores com a bênção da Igreja Católica Apostólica Romana. Essa posição hegemônica explica em parte o sucesso das igrejas reformadas, para além do protestantismo histórico, importado da Europa e dos Estados Unidos.
Os novos movimentos religiosos são em grande parte criações autóctones, brasileiras. Alguns deles ainda se tornaram multinacionais, como se a criatividade do Brasil nesse domínio tivesse saciado a sede de novas crenças em outras regiões do mundo.
De qualquer forma, mesmo as denominações mais importantes, como a Universal ou a Assembleia de Deus, são uma rede de igrejas locais, de expansão mais horizontal que vertical, sem uma verdadeira hierarquia ou obediência.
Quem percorre o Brasil descobre uma imensidão de igrejas diferentes, uma ao lado da outra, fundadas por pastores autoproclamados, estabelecidos sem autorização e às vezes sem formação. A diversidade é a regra.
Ao contrário do dogma ainda em vigor entre os católicos e os ortodoxos, não existe uma ideologia evangélica uniforme, homogênea. Existem evangélicos, no plural, tão diferentes quanto os outros brasileiros.
Se os evangélicos cresceram em detrimento do catolicismo, foi porque a Igreja romana desertou as áreas mais vulneráveis, apesar da opção preferencial pelos pobres defendida pela teologia da libertação.
Os evangélicos criam vínculos nos meios sociais desfavorecidos, despedaçados, onde os pais são irresponsáveis ou ausentes, onde os filhos são criados por mães sozinhas, tias ou avós. Nesses lugares tomados por gangues e violência os pastores criam um sentimento de pertencimento em uma comunidade, eles reivindicam seu lugar em uma sociedade que os ignora ou os despreza.
A maleabilidade da fé
Os obcecados pelos preconceitos católicos ou laicos deveriam avaliar o fenômeno e sua complexidade. A religião é o grande tema do Brasil, já dizia o falecido documentarista Eduardo Coutinho.
A religiosidade popular entre os brasileiros é tão ou até mais significativa do que nos Estados Unidos. Existe uma maleabilidade da fé que não se resume ao sincretismo conhecido dos antropólogos. O dinamismo demográfico, social e territorial se traduz por evoluções culturais e espirituais notáveis.
Os brasileiros não estão somente em movimento, eles são mutantes, sua metamorfose nunca acaba. Isso provavelmente explica o paradoxo de um povo ao mesmo tempo conservador e tolerante, em matéria de costumes e mentalidade.
É verdade que há evangélicos que são candidatos em nome de sua fé. Vários deles são pastores, e um é até mesmo candidato à presidência, o Pastor Everaldo (Partido Social Cristão).
Assim como entre os católicos, existem os aproveitadores, os manipuladores, os vendilhões do templo, que usam a religião como degrau para uma carreira política. Então são muitos deles no Congresso que formam uma bancada, e redes de televisão lhes servem de intermediário.
Mas isso não é motivo para estigmatizar os fiéis, para tratar os crentes como uma coisa só. Igualar Marina Silva aos pastores conservadores é misturar as coisas.
Marina se construiu sozinha, às custas de um esforço constante, sem contar sua luta contra as doenças. Alfabetizada aos 16 anos, ela continuou com seus estudos até se formar em história, disciplina que lecionou. Sua eloquência singular é fruto dessas experiências de formação, na qual as freiras tiveram seu papel.
Se o messianismo pode ser detectado em seu discurso, ele também é discernível em Lula, e caracteriza a esquerda desde suas origens. Marina teve sua formação no sindicalismo de Chico Mendes, o ícone da Amazônia, cuja herança é por ela encarnada.
Em seguida ela migrou fisicalmente e espiritualmente, mudou e evoluiu. Em suma, é uma história tipicamente brasileira. E é por isso que ela tem boas chances de representar um máximo de eleitores nas urnas.
Tradutor: UOL
Receba notícias do UOL. É grátis!
Veja também
- Brasil tem lugar para extrativismo e agronegócio, diz Marina na COP29
- Comitê para debater crise climática não foi criado, critica Pacheco
- Marina defende Autoridade Climática em sua pasta na contramão de ruralistas
- Neste momento todo incêndio é criminoso e governo trabalha para elevar penas, diz Marina