"É preciso ouvir quem diz 'Je ne suis pas Charlie'", diz jornalista muçulmano
Alexandre Piquard
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Vincent Kessler/Reuters
12.jan.2015 - Membro do Parlamento Europeu, Janusz Korwin-Mikke, exibe o cartaz "Não sou Charlie, sou a favor da pena de morte" em Estrasburgo, na França, durante um debate sobre os atentados terroristas
Apesar de suas diferenças no passado com o jornal satírico sobre a forma como ele tratava o islamismo, Abdelkri Branine, redator-chefe da rádio "Beur FM", manifestou já na quarta-feira (7) seu apoio ao "Charlie Hebdo".
Algumas horas após a tragédia, ele participou de uma reunião "contra o ódio, a favor da liberdade", organizada na sede do Mediapart. Definindo-se como muçulmano à frente de um veículo de mídia laico que tem muçulmanos como boa parte de sua audiência, ele dizia temer o risco de injustiças cometidas contra muçulmanos.
Na sexta-feira (9) à noite, o apresentador do programa "Les Z'informés" manifestou sua indignação no Twitter, a respeito da marcha do dia 11 de janeiro que teria sido "a maior apropriação política da história da humanidade."
Le Monde: No final o senhor foi à manifestação; superou suas reticências?
Abdelkri Branine: Sim. Houve uma tentativa repugnante de apropriação, vimos na passeata o primeiro-ministro israelense, que é um criminoso de guerra, os dirigentes do Gabão, da Turquia, e Orbán, primeiro-ministro húngaro... Mas esses políticos não ficaram muito tempo na manifestação. E, no fim, a empolgação popular dominou, foi enorme. Não há como negar, foi lindo, foi histórico, causou arrepios.
Le Monde: Qual era o estado de espírito dos muçulmanos que o senhor conhece e do público da Beur FM?
Branine: Antes da manifestação, algumas pessoas tinham primeiramente uma preocupação com a segurança, eles temiam por sua integridade física. Não é paranoia, houve dezenas de atentados contra mesquitas e pessoas desde quarta-feira. E algumas pessoas estão com medo: meus pais me ligaram para dizer que eu não fosse ao escritório, eu os convenci a não irem para a mesquita na sexta-feira, e meus sogros aposentados preferiram adiar sua volta da Argélia para a França...
Le Monde: O senhor ouviu outros argumentos entre sua audiência?
Branine: Algumas pessoas tinham vontade de participar, mas não queriam ser rotuladas como "muçulmano gentil" ou "muçulmano não terrorista" e se recusavam a ter de se justificar. Dissociar-se de algo é também admitir culpa.
Le Monde: Que muçulmanos o senhor viu decidindo participar da manifestação, no final?
Branine: Muitos decidiram ir no último momento. Havia os mais velhos, que não nasceram na França e estão mais acostumados a passar despercebidos. Mas jovens também participaram. Acompanhei a mobilização de um grupo que se preparou desde quinta-feira e se organizou, sobretudo, em torno de líderes comunitários importantes como Mohamed Mechmache da AC le Feu, Sihame Assbague da Stop le contrôle au faciès e Adil el-Ouadeh, da Indivisibles [associação que diz lutar "através do humor e da ironia, contra os preconceitos etno-raciais"].
Le Monde: Em algumas reportagens entrevistaram pessoas que acreditavam que o "Charlie Hebdo" tinha procurado represálias ao fazerem caricaturas de Maomé ou que simplesmente diziam "Je ne suis pas Charlie": qual a sua opinião a respeito disso?
Branine: É uma questão importante e o momento é de gravidade, será preciso ter vários debates na França. Para a pequena minoria de crápulas que dizem que o "Charlie Hebdo" pode ter merecido o que aconteceu, eu deixo a Justiça agir. Aqueles que dizem "Je ne suis pas Charlie" às vezes o fazem de maneira desastrada, mas é preciso ouvi-los. Não se deve fazer chantagem intelectual e dizer como o presidente George W. Bush, "ou você está a nosso favor ou está contra". Eles querem simplesmente dizer que não concordavam com o "Charlie Hebdo", com sua maneira de tratar o islamismo e os muçulmanos.
Mais do que o fato de fazer uma caricatura do profeta Maomé, sabidamente um sacrilégio, foi um desenho o mostrando com uma bomba no turbante que chocou [na verdade, uma charge do jornal dinamarquês "Jyllands-Posten, republicada em 2006]. Ele se alia com a islamofobia ao associar o islamismo com o terrorismo. Mas esses desacordos, no caso da chacina contra o "Charlie Hebdo", não contam. E você não precisa dizer "Je suis Charlie" para se compadecer das famílias.
Le Monde: Muitas personalidades e boa parte da mídia fizeram apelos para evitar confusões entre assassinos e muçulmanos. Ainda assim o senhor teme que isso aconteça?
Branine: Há muitas mensagens dessas, o que é positivo, ainda que algumas paralelamente queiram instaurar uma forma de chantagem e instrumentalizar essa tragédia contra aqueles que lutam contra a islamofobia. Como, por exemplo, Jeannette Bougrab, que afirmou à BFMTV que a associação de Indígenas da República tinha uma "responsabilidade" no ataque de quarta-feira contra o "Charlie Hebdo".
Le Monde: O senhor acompanhou a polêmica sobre Dieudonné, que está sendo investigado por apologia ao terrorismo, mas se diz "igual ao Charlie"?
Branine: Sim. Algumas pessoas pensam que há dois pesos e duas medidas entre a política aplicada a Dieudonné e a que foi reservada a Eric Zemmour, por exemplo. Mas nos últimos dias eu os acompanhei relativamente pouco. Pessoas com as quais eu discuto sobre Dieudonné – que não faz mais piadas sobre judeus e se aliou com o antissemita Alain Soral – se manifestaram pouco. Acho que algumas delas, quando ele disse que se sentia "Charlie Coulibaly", acharam que ele estava abusando. Que ele estava tentando ganhar audiência com esse caso.
Le Monde: Como o senhor vê o pós-11 de janeiro?
Branine: Há muitos temas a se discutir. É preciso lutar contra as discriminações e as injustiças das quais se alimentam pessoas como aquelas que cometem atentados. Além disso, a respeito da comunidade judaica, também cabe à população que vive nos mesmos bairros que ela, tranquilizá-la. As pessoas precisam conversar. A palavra de ordem #jewsandarabsrefusetobeenemies ["judeus e árabes se recusam a ser inimigos"], que surgiu no verão de 2014 associada ao conflito entre Israel e Palestina, deve se tornar mais do que uma simples hashtag no Twitter.
Um obstáculo para o diálogo é o perfil dos líderes das comunidades: do lado dos muçulmanos, eles têm um grande déficit de legitimidade e continuam associados ao islamismo consular, ligado ao país de origem, um sistema que precisa acabar. Do lado dos judeus, os líderes estão muito à direita e representam mais Israel do que os judeus da França. Isso faz com que o conflito entre Israel e Palestina seja importado para a França. É preciso superar isso.
Tradutor: UOL
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