"Não se faz isso por causa de um desenho", lamenta irmã de assassinos do "Charlie Hebdo"
Soren Seelow
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Polícia da França/AFP
Cherif (esq.) e Said Kouachi (dir.), os irmãos responsáveis pelo atentado em Paris
Durante a caçada após o atentado, esposas e irmãs dos irmãos Kouachi passaram por um longo interrogatório feito pela polícia
"Tudo isso me parece surreal. Sinto como se estivesse em um pesadelo e que a qualquer momento vou acordar." O sonho ruim de Izzana Kouachi havia começado há 24 horas. Na quarta-feira (16h30), a brigada criminal a prendeu em sua casa em Gennevilliers (Hauts-de-Seine): seu marido, Chérif, e o irmão mais velho dele, Said, haviam acabado de assassinar doze pessoas na sede do "Charlie Hebdo".
Colocada sob custódia durante 76 horas, foi entre sua cela e a sala de interrogatórios da Direção Regional da Polícia Judiciária de Paris que ela viveu a perseguição a seu marido. Foram três dias isolada do mundo, durante os quais a jovem foi imperceptivelmente passando da negação ao "pesadelo", à medida que os investigadores iam destilando informações. Sua custódia terminou sem nenhuma palavra e em um longo choro, na noite de 10 de janeiro, com a revelação da morte de Chérif, abatido na véspera pelo GIGN [Grupo de Intervenção da Gendarmaria Nacional].
A uma centena de quilômetros de lá, na sede da polícia judiciária de Reims, a esposa de Said Kouachi, Soumya, se refugiou na mudez. Ela não "reconhecia" mais seu marido na descrição que os investigadores fizeram dele. "Imagine que a pessoa com quem você vive, com quem você acorda toda manhã, com quem você brinca, possa ter matado doze pessoas. É inacreditável", ela desabafa.
Mas ela consente em descrever as últimas horas que passou com seu marido em sua casa em Reims. "Todos nós tínhamos gastroenterite em casa. O dia todo – terça-feira (6), véspera da chacina - , meu marido ficou doente; no final do dia ele começou a vomitar." Na quarta-feira de manhã, pouco depois das 7h, Said saiu para se encontrar com seu irmão em Gennevilliers: "Ele me disse que ia voltar ou na mesma noite, ou no dia seguinte." Ele não voltou e a deixou viúva, com esclerose múltipla e uma criança pequena.
Recusa ao contato com o sexo oposto
Na sede da polícia em Paris, Izzana também descreveu a intimidade de seu pequeno apartamento em Gennevilliers. Na véspera do massacre, Chérif não havia comido nada, nem no almoço nem no jantar. Ele foi dormir por volta das 21h pois estava com "dor de barriga". O interfone tocou. Ele se levantou para atender, disse que abriu a porta para "uma vizinha" e depois desceu para "tomar um ar". Os investigadores descobriram depois que o telefone de Amedy Coulibaly havia sido acusado naquele exato momento em frente ao prédio. Na manhã seguinte, Chérif viu pela janela Said chegando, e saiu por volta das 10h30, anunciando que ia "fazer compras". E foi a última vez que ela o viu.
De acordo com suas esposas, nada indicava que os dois irmãos algum dia matariam em nome da religião. Teria a prática rigorosa do islamismo as cegado diante do fanatismo de seus cônjuges? Teria a recusa ao contato com o sexo oposto em seus lares as mantido alheias às companhias de seus maridos? Durante os interrogatórios os investigadores se depararam com uma intimidade dividida por proibições e com os tabus de uma família separada por tragédias e recomposta em torno do dogma.
"Chérif, assim como eu, praticávamos um islamismo totalmente normal", afirmou sua esposa. O casal fazia suas cinco preces diárias, cada um se abstinha de apertar a mão de pessoas do sexo oposto e ela mesmo usava o jilbab, um vestido largo que deixa o resto descoberto, desde a "famosa lei" que proíbe o véu integral no espaço público. Ela afirmou aos investigadores que o Estado Islâmico "é uma besteira", que para ela a Al-Qaeda é sinônimo de "mortes" e "medo", e que seu marido parecia pensar da mesma forma.
Ela sabia pouco das relações de seu marido, uma vez que suas "convicções religiosas" não a incentivavam a ter contato com outros homens. De sua viagem a Omã no verão de 2011, para "mudar de ares", ela se lembra somente que ele havia voltado cheio de "picadas de mosquito." Os serviços de inteligência suspeitam que na verdade ele fora ao Iêmen em companhia de seu irmão para receber um treinamento em manejo de armas.
Na sede da polícia judiciária de Reims, um oficial da subdireção antiterrorista (SDAT) tentava saber um pouco mais sobre as ligações que uniam Chérif e Said à irmã deles, Aicha. Essa mulher de 33 anos, que acredita que as religiões monoteístas são "o contrário" do laicismo, se descreveu "como uma mãe substituta" para eles desde que seus pais morreram nos anos 1990.
"Meus irmãos são como um casal. Cada um tinha seu lugar. Chérif fala muito, ele gosta de aparecer. Said é discreto", ela explicou. "O Chérif pode ser encrenqueiro, é possível. Ele é diferente de nós, ele procura uma figura paterna. Ele precisa ser conduzido, levado pela mão."
Said, o mais velho (34 anos), entrou na religião "mais jovem" que Chérif (32), mas de maneira mais "moderada", ela explicou. Ele foi o primeiro a andar com Farid Benyettou, o ex-mentor da rede de Buttes-Chaumont, que treinou os irmãos Kouachi na ideologia radical. "O Chérif entrou no bando porque ele não conseguia ficar sem o Said": mas foi ele que primeiro passou para o fundamentalismo.
"A senhora chamaria a prática do islamismo por parte de seus irmãos de 'radical'?", perguntou-lhe o oficial.
"Acho pejorativo o termo radical; mas sectário sim, com certeza. Eles adotaram uma visão sectária do islamismo, certamente. Eles eram muito racistas em relação a todos aqueles que não fossem muçulmanos e árabes."
Sectarismo latente
No dia seguinte à chacina do "Charlie Hebdo", uma jovem de 20 anos foi espontaneamente até a polícia. Ela se apresentou como meia-irmã dos irmãos Kouachi. Criada em uma família adotiva após a morte de sua mãe, ela se lembra que o sectarismo dos irmãos Kouachi já era latente na infância:
"Lembro-me das várias vezes que eles me ligavam quando eu tinha uns 9 ou 10 anos, para me dizer que eu precisava me tornar muçulmana. Eles ameaçavam explodir a casa de meus pais se eu não fizesse o que eles mandavam (...) Quando me tornei maior de idade, eles queriam que eu fosse morar com eles. Sempre recusei. Porque eu sabia que eles estavam a fundo na religião, e eu não queria entrar. Eu como carne de porco e sabia que se eu entrasse naquele negócio não ia dar certo (...) Chérif dizia que o vazio só podia ser preenchido pela religião."
No sábado (10), no final da manhã, um policial da SDAT contou a Aicha que seus irmãos haviam sido mortos na véspera, depois de terem "aberto fogo contra as forças policiais". A jovem chorou, e depois perguntou espontaneamente: "Algum policial não morreu? Não entendo, tudo isso por causa de um desenho? Não é possível, e as famílias das vítimas e os reféns... Que absurdo, há famílias em luto... Não, não se faz isso por causa de um desenho. Não, não se mata por causa de um desenho, o Chérif só pensou nele mesmo, ele havia me ligado três dias antes, que hipocrisia. Said não pensou em sua esposa. A verdade é que é um absurdo fazer isso por causa de um desenho. Tive a mesma vida que os meus irmãos, meu pai batia na gente, minha mãe era negligente. Mas sempre nos ajudamos uns aos outros."
Tradutor: UOL
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