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Na ditadura, Exército torturava recrutas em treinamento no Pará, diz ex-soldado

Bruna Borges*

Do UOL, em Marabá (PA)

16/09/2014 06h00Atualizada em 16/09/2014 17h19

Além de perseguidos políticos, o Exército torturava seus próprios recrutas durante o período militar para “treiná-los”. Durante diligência de reconhecimento da Comissão Nacional da Verdade sobre a Guerrilha do Araguaia nesta segunda-feira (15) na "Casa Azul" em Marabá (PA), o ex-soldado Manoel Messias Guido Ribeiro, o Guido, contou como foi torturado logo que foi convocado para trabalhar para os militares.

“Eles me colocaram em um tambor de metal e me trancaram ali pelado. E soltaram o tambor de um morro, machuca muito, bate em pedra e tudo o que é coisa. Eles falavam que era treinamento, mas queriam mesmo era brutalizar a gente, mas não conseguiram”, conta.

Guido, 60, atuou como soldado entre 1974 e 1980 e é testemunha de violações aos direitos humanos cometidas pelo Exército para reprimir a guerrilha. Ele era um soldado conscrito, ou seja, um civil convocado pelos militares para prestar serviços às Forças Armadas por um tempo determinado. Seu depoimento ocorreu durante uma visita de pesquisa à "Casa Azul", atual sede do Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes), que era usada pelo Exército como prisão ilegal e centro clandestino de tortura durante o regime militar.

Ao visitar a "Casa Azul" para reconhecer as salas, usadas como celas, Guido se emocionou e disse sentir profunda tristeza. “Tem gente que fala em lugar mal-assombrado. Aqui era assim, quando saíamos daqui não queríamos voltar [para trabalhar] porque sabíamos que iríamos ver algo que não íamos gostar.”

Ele conta que levava água e comida escondidas em uma lata para presos, principalmente após sessões de tortura. “Se perguntassem, eu dizia que era urina e levava água para eles”, disse.

Região da Guerrilha do Araguaia - Arte/UOL - Arte/UOL
Região onde ocorreu a Guerrilha do Araguaia, entre Tocantins e Pará
Imagem: Arte/UOL


Segundo a Comissão da Verdade, esse tipo de “treinamento” com castigos físicos era utilizado com frequência pelos militares contra os soldados e militares de patentes baixas para estimular a raiva e tentar evitar que eles se chocassem com as sessões de torturas contra os presos políticos. De acordo com o antropólogo Orlando Costa, assessor da comissão, havia um alto número de suicídio entre os recrutas dessa época em decorrência das torturas sofridas e pela violência que presenciavam.

A tortura era executada pelos comandantes, afirmou Guido. Ele contou que viu algumas pessoas mortas na "Casa Azul" após forte tortura. E que nesses casos, os comandantes “sumiam” rapidamente com os corpos.

"Casa Azul"

Testemunhas e o ex-soldado reconheceram a sede do Dnit como local onde guerrilheiros eram levados presos e castigados. Segundo eles, na "Casa Azul" existia tortura com choques elétricos, espancamentos e pau-de-arara. Há relatos também de que os militares obrigavam os presos a cantar uma música e, ao final delas, sofriam nova sessão de choques.

O comerciante Pedro Borba, 78, foi acusado pelo Exército de vender suprimentos e abastecer os guerrilheiros, o que na interpretação dos militares era colaborar com a guerrilha. Ele conta que teve de carpir um terreno onde foram feitas covas e que os militares usaram essas sepulturas para enterrar vivas pessoas por um tempo para forçá-las a passar informações sobre os guerrilheiros.

“Eu ouvi que eles iam deixar ali [na cova] a pessoa ‘hora e meia’. E depois diziam: quando sair, ele conta”, declarou Borba.

A comissão não informou quantas pessoas foram perseguidas durante guerrilha, pois a pesquisa histórica ainda não foi concluída, mas seus números serão apresentados no relatório final da CNV que será publicado em dezembro. Segundo Sezostrys Alves da Costa, presidente da Associação de Torturados da Guerrilha do Araguaia, há cerca de 600 processos de pedidos de anistia no Ministério da Justiça de vítimas do Araguaia.

*A jornalista Bruna Borges viajou a Marajá a convite da Comissão Nacional da Verdade