"É preciso comer o que tem", diz venezuelano sobre escassez de comida
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Federico Parra/AFP
Pessoas esperam em fila do lado de fora de padaria em Caracas
A chegada da polícia sugere que as vendas em um mercado de Caracas estão por acabar e é preciso prevenir uma explosão de raiva de centenas de pessoas que esperam nas filas, uma reação que se multiplica na Venezuela com a crise econômica.
Os policiais chegam a um dos mercados da rede de abastecimento do governo, o Abastos Bicentenario, onde aproximadamente 900 pessoas fazem uma fila desde a madrugada, embora só estejam disponíveis para a venda pães, papel higiênico e sabonete.
"Quando já não há nada, a polícia começa a chegar. É sinal de que está acabando tudo", conta Rosaura Guainet, uma dona de casa de 35 anos do bairro vizinho de Petarse que acompanhava, há sete horas, uma sobrinha que faria as compras com sua carteira de identidade.
Há uma semana, quando uma multidão abarrotava este lugar, onde são expostos produtos subsidiados, um grande tumulto eclodiu.
"Iam queimar este espaço, lançavam garrafas com gasolina. Havia muita gente estressada, peguei minha moto e fui embora. Uns sobrevivem através da delinquência, da escassez, e podem te matar por causa de dois sacos de farinha", relata Deivid Navas, um mensageiro de 28 anos, enquanto espera sua mulher, na fila já há algumas horas.
Aumento da tensão
Entre 1º de janeiro e 12 de fevereiro, a ONG Observatório Venezuelano de Conflitos Sociais contabilizou 757 protestos e 32 saqueamentos ou tentativas de saqueamento.
Insatisfações trabalhistas, cortes de água e luz e escassez de alimentos foram os motivos, segundo a ONG, que levaram este país a mergulhar em uma grave crise com inflação de 180% em 2015 e desabastecimento de dois terços dos produtos básicos.
"Nas últimas semanas, houve um aumento de protestos, destacadas por sua gravidade as tentativas de saqueamentos. Progressivamente, a tensão social se agrava", afirma Marco Ponce, coordenador do Observatório.
Um saque a um depósito de alimentos do governo no dia 18 de fevereiro, na localidade de Angostura (leste), terminou com a prisão de uma vereadora da oposição, acusada de instigar o crime.
As manifestações, assegura Ponce, estenderam-se a "localidades onde, meses atrás, não aconteciam"; uma tendência observada desde 2015, quando a ONG documentou 5.851 pequenos protestos.
Enquanto a insatisfação, em 2014, foi dada principalmente por razões políticas --para exigir a renúncia do presidente socialista Nicolás Maduro--, desde 2015 a motivação econômica cresce.
"A crise vem se concentrando de maneira considerável no aumento do conflito porque as pessoas não recebem respostas", afirma Ponce.
"É preciso comer o que tem"
Uma pesquisa recente realizada pela empresa Venebarómetro revelou que oito em cada 10 venezuelanos não têm dinheiro suficiente para a compra de comida e medicamentos.
Contudo, 68% reportaram que as filas aumentaram, mas somente 29% contam com o serviço de água de forma permanente.
"Se antes comíamos meio frango, agora é um quarto", afirma Rosaura ao lado de seu filho de quatro anos. "É preciso comer o que tem", acrescenta Deivid Navas.
Segundo o Banco Central, o preço dos alimentos subiu 315% em 2015, ao passo que estimativas privadas apontam que uma família média precisa de 11,1 salários mínimos para adquirir uma cesta básica.
O desabastecimento foi agravado por uma queda de 70% do dinheiro do petróleo, responsável por 96% da renda deste país dependente das importações, onde o governo monopoliza os dólares e exerce um controle ferrenho sobre os preços.
Ao mesmo tempo, viu-se crescer um mercado negro baseado em produtos subsidiados para serem revendidos com valores até 25% mais altos, agravando a escassez e a inflação.
"O Abastos Bicentenario apodreceu", admitiu Maduro, que empreendeu uma ofensiva contra funcionários considerados corruptos desses supermercados.
O presidente, que atribui a crise a uma "guerra econômica" de opositores para derrubá-lo, também pôs em prática um plano de estímulo para a produção, proclamando o fim da dependência petroleira.
Gonzalo Himiob, da ONG Foro Penal, assegura que os protestos aumentaram, apesar da força pública estar autorizada a usar suas armas para contê-los e das penas previstas para ações como o bloqueio de ruas.
O governo optou pela "repressão muito violenta" para perpetuar o medo, adverte.
Enquanto espera sua sobrinha, sentindo um misto de raiva e desconsolo, Rosaura afirma que "as pessoas não aguentam mais humilhação".