Pobres vendem órgãos para pagar dívidas de microcrédito em Bangladesh
O vilarejo de Kalai, em Bangladesh, tem uma paisagem idílica à primeira vista, como outros vilarejos do país. Mas vários habitantes locais alegam ter sido convencidos a vender seus órgãos para pagar dívidas que fizeram em esquemas de microcrédito.
A ideia de oferecer pequenos empréstimos a pessoas rejeitadas pelos programas de crédito bancário tradicionais rendeu o Prêmio Nobel da Paz de 2006 ao bengali Mohammad Yunus, sendo saudada como um caminho para que essas pessoas saíssem da pobreza.
A proposta era que os empréstimos incentivassem o empreendedorismo e dessem poder às mulheres. Mas, como mostra o relato da jornalista Sophie Cousins, que esteve em Kalai, a "revolução" acabou agravando os problemas enfrentados por alguns aqueles que mais deveria ajudar.
A seis horas ao norte da capital Daca, crianças brincam nuas se pendurando em pedaços de bambu que sustentam as cabanas onde moram.
Essas crianças, assim como outras milhões que vivem nas áreas rurais de Bangladesh, crescem em meio a grandes dificuldades financeiras. Em uma tentativa de aliviar a pobreza, muitos habitantes de Kalai contraem empréstimos, mas em seguida mergulham em mais dívidas quando se veem incapazes de pagar as prestações.
Alguns, inclusive, decidem vender seus órgãos como último recurso para saldar as dívidas e tentar escapar do ciclo vicioso da pobreza.
A venda de órgãos em si não é uma novidade, e muitas pessoas pobres no Sul da Ásia recorrem a esta prática há anos. Mas o que não se falava muito até agora é que cada vez mais pessoas estão fazendo parte de uma rede de tráfico de órgãos porque se sentem pressionadas a pagar suas dívidas.
Arrependimento
Mohammad Akhtar Alam, de 33 anos, exibe uma cicatriz de 38 centímetros de comprimento que mostra de onde extraíram seu rim. A remoção de órgão - algo ilegal em Bangladesh a menos que seja para doação para um parente próximo - combinada com cuidados pós-operatórios precários, o deixou parcialmente paralisado, cego de um olho e incapaz de carregar pesos.
Ele é dono de uma pequena mercearia que vende arroz, farinha e, de vez em quando, doces.
Há dois anos, sua renda como motorista de van não era suficiente para pagar as parcelas semanais de dívidas que havia contraído com oito organizações não-governamentais (ONGs) diferentes. Quando não conseguiu arcar com a primeira dívida, contraiu uma segunda para pagar a primeira e assim sucessivamente.
"Um dia estava conversando com um passageiro que me perguntou porque estava fazendo aquele trabalho", relembra.
"Eu expliquei que era pobre e devia cerca de 100 mil taka (aproximadamente US$ 1,3 mil)".
O passageiro era uma peça importante em uma rede de tráfico de órgãos, intermediando a compra e vende de rins, fígados, entre outros. O homem convenceu Alam a vender seu rim e lhe prometeu 400 mil taka (cerca de US$ 5 mil) em retorno.
Duas semanas mais tarde, Alam deixou um hospital privado em Daca e voltou para casa com a saúde debilitada e com uma fração do dinheiro que lhe foi prometido. Ele se arrepende do que fez.
Mohammad Moqarram Hossen, também de Kalai, é outra vítima.
"Eu decidi pagar a dívida", diz ele, enquanto mostra a cicatriz de uma operação que fez na Índia para remover um rim.
"O médico disse que não teria riscos, mas agora não posso fazer nenhum trabalho pesado."
'Pressão'
O microcrédito, aclamado como "salvação" para milhões de pessoas, tem como objetivo quebrar o ciclo de pobreza estimulando atividades geradoras de renda por meio de empréstimos com poucos efeitos colaterais.
Mas sua estrutura de pagamento e a aparente incapacidade de as instituições de microfinanças determinarem quem já tem outros empréstimos pode causar problemas.
O professor Monir Moniruzzaman, do departamento de Antropologia da Universidade do Estado de Michigan (Estados Unidos), investiga o comércio de órgãos em Bangladesh há 12 anos.
"As dívidas de muitas pessoas crescem em uma espiral, e eles acham que a única forma de pagar as parcelas é vendendo o próprio rim", observa.
Ele alega que instituições como o Banco Grameen (laureado com o Nobel da Paz em 2006 juntamente com Yunus) e a ONG Brac fazem pressão psicológica para as pessoas pagarem suas dívidas com ações como marcar presença em frente à casa do cliente o dia todo e ameaças verbais de que o devedor será denunciado à polícia.
O acadêmico confirmou que algumas das 33 pessoas que venderam seus rins que ele entrevistou para sua pesquisa disseram que tomaram a decisão por se sentirem pressionadas a pagar o que deviam.
"Um homem me contou que deixou sua cidade por um ano por não conseguir encarar os funcionários da ONG", contou Moniruzzaman.
Em entrevista à BBC, o banco Grameen negou que haja assédio ou outros tipos de pressão e afirma que nunca entrou com ação contra quem toma empréstimo.
E Mohammad Ariful Hoq, analista da Brac, uma das maiores organizações de desenvolvimento do mundo, nega que seus funcionários pressionem os clientes ou que haja ligação entre microcrédito e tráfico de órgãos.
Benefícios do microcrédito
Uma pesquisa divulgada neste ano pelo Banco Mundial mostrou que são grandes os benefícios dos empréstimos, e dados compilados por uma "campanha pelo microcrédito" apontam que este tipo de empréstimo já tirou dez milhões de bengaleses da pobreza entre 1990 e 2008.
Mas à medida que a demanda por órgãos continua a alimentar um mercado negro em Bangladesh, membros pobres de comunidades rurais continuarão sendo seduzidos por falsas promessas de uma vida melhor.
Segundo o professor Moniruzzaman, as consequências do tráfico de órgãos são devastadoras.
"Não há garantias sobre a procedência dos órgãos e quão seguros eles são. Por outro lado, sob a perspectiva de quem está vendendo, a saúde se deteriora após a operação, tornando difícil para a pessoa voltar a ganhar dinheiro porque não poderá voltar para seus trabalhos antigos que demandam muito fisicamente."
Não há dúvida de que o microcrédito mudou a vida de milhões em todo mundo.
Mas à medida que a polarização entre ricos e pobres aumenta, especialistas acreditam que os mais necessitados vão continuar contraindo mais dívidas, algumas vezes recorrendo a medidas desesperadas como a venda de órgãos.
Os homens de Kalai gostariam de ter sabido disso antes.
A ideia de oferecer pequenos empréstimos a pessoas rejeitadas pelos programas de crédito bancário tradicionais rendeu o Prêmio Nobel da Paz de 2006 ao bengali Mohammad Yunus, sendo saudada como um caminho para que essas pessoas saíssem da pobreza.
A proposta era que os empréstimos incentivassem o empreendedorismo e dessem poder às mulheres. Mas, como mostra o relato da jornalista Sophie Cousins, que esteve em Kalai, a "revolução" acabou agravando os problemas enfrentados por alguns aqueles que mais deveria ajudar.
A seis horas ao norte da capital Daca, crianças brincam nuas se pendurando em pedaços de bambu que sustentam as cabanas onde moram.
Essas crianças, assim como outras milhões que vivem nas áreas rurais de Bangladesh, crescem em meio a grandes dificuldades financeiras. Em uma tentativa de aliviar a pobreza, muitos habitantes de Kalai contraem empréstimos, mas em seguida mergulham em mais dívidas quando se veem incapazes de pagar as prestações.
Alguns, inclusive, decidem vender seus órgãos como último recurso para saldar as dívidas e tentar escapar do ciclo vicioso da pobreza.
A venda de órgãos em si não é uma novidade, e muitas pessoas pobres no Sul da Ásia recorrem a esta prática há anos. Mas o que não se falava muito até agora é que cada vez mais pessoas estão fazendo parte de uma rede de tráfico de órgãos porque se sentem pressionadas a pagar suas dívidas.
Arrependimento
Mohammad Akhtar Alam, de 33 anos, exibe uma cicatriz de 38 centímetros de comprimento que mostra de onde extraíram seu rim. A remoção de órgão - algo ilegal em Bangladesh a menos que seja para doação para um parente próximo - combinada com cuidados pós-operatórios precários, o deixou parcialmente paralisado, cego de um olho e incapaz de carregar pesos.
Ele é dono de uma pequena mercearia que vende arroz, farinha e, de vez em quando, doces.
Há dois anos, sua renda como motorista de van não era suficiente para pagar as parcelas semanais de dívidas que havia contraído com oito organizações não-governamentais (ONGs) diferentes. Quando não conseguiu arcar com a primeira dívida, contraiu uma segunda para pagar a primeira e assim sucessivamente.
"Um dia estava conversando com um passageiro que me perguntou porque estava fazendo aquele trabalho", relembra.
"Eu expliquei que era pobre e devia cerca de 100 mil taka (aproximadamente US$ 1,3 mil)".
O passageiro era uma peça importante em uma rede de tráfico de órgãos, intermediando a compra e vende de rins, fígados, entre outros. O homem convenceu Alam a vender seu rim e lhe prometeu 400 mil taka (cerca de US$ 5 mil) em retorno.
Duas semanas mais tarde, Alam deixou um hospital privado em Daca e voltou para casa com a saúde debilitada e com uma fração do dinheiro que lhe foi prometido. Ele se arrepende do que fez.
Mohammad Moqarram Hossen, também de Kalai, é outra vítima.
"Eu decidi pagar a dívida", diz ele, enquanto mostra a cicatriz de uma operação que fez na Índia para remover um rim.
"O médico disse que não teria riscos, mas agora não posso fazer nenhum trabalho pesado."
'Pressão'
O microcrédito, aclamado como "salvação" para milhões de pessoas, tem como objetivo quebrar o ciclo de pobreza estimulando atividades geradoras de renda por meio de empréstimos com poucos efeitos colaterais.
Mas sua estrutura de pagamento e a aparente incapacidade de as instituições de microfinanças determinarem quem já tem outros empréstimos pode causar problemas.
O professor Monir Moniruzzaman, do departamento de Antropologia da Universidade do Estado de Michigan (Estados Unidos), investiga o comércio de órgãos em Bangladesh há 12 anos.
"As dívidas de muitas pessoas crescem em uma espiral, e eles acham que a única forma de pagar as parcelas é vendendo o próprio rim", observa.
Ele alega que instituições como o Banco Grameen (laureado com o Nobel da Paz em 2006 juntamente com Yunus) e a ONG Brac fazem pressão psicológica para as pessoas pagarem suas dívidas com ações como marcar presença em frente à casa do cliente o dia todo e ameaças verbais de que o devedor será denunciado à polícia.
O acadêmico confirmou que algumas das 33 pessoas que venderam seus rins que ele entrevistou para sua pesquisa disseram que tomaram a decisão por se sentirem pressionadas a pagar o que deviam.
"Um homem me contou que deixou sua cidade por um ano por não conseguir encarar os funcionários da ONG", contou Moniruzzaman.
Em entrevista à BBC, o banco Grameen negou que haja assédio ou outros tipos de pressão e afirma que nunca entrou com ação contra quem toma empréstimo.
E Mohammad Ariful Hoq, analista da Brac, uma das maiores organizações de desenvolvimento do mundo, nega que seus funcionários pressionem os clientes ou que haja ligação entre microcrédito e tráfico de órgãos.
Benefícios do microcrédito
Uma pesquisa divulgada neste ano pelo Banco Mundial mostrou que são grandes os benefícios dos empréstimos, e dados compilados por uma "campanha pelo microcrédito" apontam que este tipo de empréstimo já tirou dez milhões de bengaleses da pobreza entre 1990 e 2008.
Mas à medida que a demanda por órgãos continua a alimentar um mercado negro em Bangladesh, membros pobres de comunidades rurais continuarão sendo seduzidos por falsas promessas de uma vida melhor.
Segundo o professor Moniruzzaman, as consequências do tráfico de órgãos são devastadoras.
"Não há garantias sobre a procedência dos órgãos e quão seguros eles são. Por outro lado, sob a perspectiva de quem está vendendo, a saúde se deteriora após a operação, tornando difícil para a pessoa voltar a ganhar dinheiro porque não poderá voltar para seus trabalhos antigos que demandam muito fisicamente."
Não há dúvida de que o microcrédito mudou a vida de milhões em todo mundo.
Mas à medida que a polarização entre ricos e pobres aumenta, especialistas acreditam que os mais necessitados vão continuar contraindo mais dívidas, algumas vezes recorrendo a medidas desesperadas como a venda de órgãos.
Os homens de Kalai gostariam de ter sabido disso antes.
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