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De menino soldado em Uganda a comandante no banco dos réus: a turbulenta vida de Dominic Ongwen

08/12/2016 18h25

Sequestrado quando criança e forçado a crescer empunhando armas para o grupo Exército de Resistência do Senhor (LRA na sigla em inglês), de Uganda, Dominic Ongwen se vê novamente num lugar onde não escolheu estar.

Conhecido como "Formiga Branca", Onwen tornou-se um dos mais cruéis comandantes da história do grupo rebelde LRA. Agora, está no banco dos réus do Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia. Ele será o primeiro menino soldado a ser julgado pela corte.

Ele foi denunciado por 70 crimes contra a humanidade e de guerra, incluindo ataques contra civis, tortura, crimes sexuais e ordernar a prática de canibalismo, além de recrutamento e uso de soldados crianças nas ações do LRA.

O próprio Ongwen foi vítima de algumas das acusações pelas quais responde hoje.

Por isso, a história de vida do ex-combatente do LRA se transformou em estratégia de defesa. Seus advogados argumentam que ele deveria ser reconhecido como um "soldado criança" e, por isso, declarado inocente.

A defesa afirma ainda que, durante todo o tempo que esteve no grupo liderado por Joseph Kony, Ongwen estava sob coação, o que teria ocorrido mesmo depois que ele completou 18 anos, idade mínima de responsabilidade criminal no Tribunal Penal Internacional.

Quem narra a turbulenta história do "Formiga Branca" para a BBC é Ledio Cakaj, autor de When the Walking Defeats You: One Man's Journey as Joseph Kony's Bodyguard ("Quando a caminhada te derrota: a jornada de um homem como guarda-costas de Joseph Kony", em tradução literal), publicado neste ano.

Menino soldado

A natureza secreta do LRA, um grupo paramilitar envolvido em conflitos no leste e centro da África há quase três décadas, dificulta checar detalhes da vida de Ongwen.

Mas há quase nenhuma dúvida que rebeldes do LRA de fato tiraram Ongwen de sua família no norte de Uganda quando ele ainda era uma criança. Ainda assim, é difícil precisar quando isso aconteceu.

Não está claro, por exemplo, se ele foi sequestrado no final dos anos 1980 ou no início dos anos 1990 nem quantos anos ele tinha. Estima-se que ele foi parar no LRA com uma idade de nove a 14 anos.

Uma vez dentro do grupo, detalhes da vida e, principalmente, as escolhas de Ongwen são ainda mais difíceis de se precisar.

Acredita-se que, em seus primeiros dias com os rebeldes, viveu com as famílias de comandantes do primeiro escalão, incluindo o fundador Joseph Kony. Na categoria de "youngus" (jovem) ou "kadogo" (pequeno), teria ajudado a preparar comida e carregar os pertences dos líderes.

Com base em experiências narradas por ex-membros do LRA, crê-se que ele tenha sido forçado a participar de assassinatos e de sessões de espancamento de outros sequestrados que tenham tentado escapar - estratégia comum usada para desencorajar quem quer abandonar o grupo.

Entidades que atuam em defesa de direitos humanos também já documentaram táticas de lavagem cerebral usadas por anos com meninos soldados.

Kony selecionava os "kadogo" que, muitas vezes, acabavam trabalhando como guarda-costas para os mesmos comandantes que serviram quando crianças.

As mulheres sequestradas pelo grupo, conhecidas como "ting ting", normalmente são adolescentes na fase pré-puberdade usadas para cuidar dos filhos dos líderes e ajudar as chamadas esposas.

Ao atingir a puberdade, uma "ting ting" torna-se "lamegu", como são chamadas as esposas de comandantes distribuídas quase exclusivamente por Kony aos seus principais aliados.

Perto do poder

Para os jovens soldados, a proximidade com Kony costumava significar um posto militar.

A patente vem com responsabilidades de comando, bem como com guarda-costas e esposas pessoais. São privilégios desejados, que aumentam a chance de sobrevivência nos ambientes punitivos em que os seguidores do LRA vivem.

Ao longo dos anos, antigos membros do LRA referiam-se a Ongwen como major, coronel, brigadeiro. Mais recentemente, contudo, ele teria virado um simples soldado, indicando que em algum momento foi desqualificado por Kony, que usa patentes e outros métodos para exercer controle quase completo sobre sua tropa.

Okot George "Odek", um ex-combatente que escapou depois do "Formiga Branca", alegou que Kony ordenou uma severa surra em Ongwen no final de 2014 por insubordinação.

Em má forma física e com a ajuda de um outro soldado, Ongwen teria escapado do acampamento de Kony na região de Darfur, no sul do Sudão, chegando à vizinha República Centro-Africana.

Ali, ele foi capturado por outros rebeldes e entregue às forças especiais americanas naquele país - parte de uma missão da União Africana (UA) para lidar com o LRA.

No banco dos réus

No norte de Uganda, as reações ao julgamento Ongwen são contraditórias. Alguns, entre estes pessoas que já fizeram parte do LRA, dizem que ele também é uma vítima.

Florence Ayot, uma das ex-esposas de Ongwen, disse à BBC em 2008: "Dominic costumava nos dizer que ele foi sequestrado quando era muito jovem. Tudo que ele fez foi em nome de Kony, então ele é inocente".

Outros argumentam que ele deveria ser responsabilizado por suas ações.

"Ongwen, na condição comandante dos rebeldes, deve ter participado nas reuniões de planejamento para atacar e sequestrar pessoas... portanto, ele deve ser responsabilizado por todas as atrocidades cometidas, incluindo assassinato e perda de propriedades", disse um oficial local ao jornal Daily Monitor em janeiro.

Várias pessoas também lembram a falta de punição por crimes contra civis cometidos por combatentes do Exército de Resistência Nacional (NRA) - o grupo liderado pelo presidente do Uganda, Yoweri Museveni, que entrou no poder em 1986.

"Em Uganda, enquanto muitos condenam o LRA e os crimes cometidos por ele, falta olhar para o papel do governo, que muitos no norte gostariam de ver sendo interrogado e investigado", escreveu a jornalista Rosebell Kagumire.

Reparação de danos

O LRA e outros grupos de rebeldes, estes com atuação de menor duração, surgiram em parte como uma resposta às atrocidades cometidas pelo grupo do presidente no norte de Uganda, de acordo com documentos coletados por ONGs locais, como o Projeto Justiça e Reconciliação.

Acima de tudo, muitos esperam que o Tribunal Penal Internacional conceda reparações às vítimas do violento conflito na região.

Desembolsar qualquer dinheiro como forma de reparar danos seria um processo longo e complicado, mas, para as vítimas, pode ser "o único sinal de um julgamento bem-sucedido", disse Lino Owor Ogora, da ONG Foundation for Justice and Development Initiatives.