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'Meus pais não sentam à mesa com minha esposa e filho': o drama envolvendo casamentos entre castas na Ásia

Família de Nitu aceitou o casamento dela, mas pais do marido não a recebem em casa - Arquivo pessoal
Família de Nitu aceitou o casamento dela, mas pais do marido não a recebem em casa Imagem: Arquivo pessoal

Nathalia Passarinho - Da BBC Brasil em Londres

11/11/2017 16h38

Balaram Dhakal se interessou por Nitu Karki assim que a viu, em 2007, na fileira da frente da sala onde ele daria aulas de gestão hoteleira, em Katmandu, no Nepal. "Eu a achei muito bonita. Os olhos claros me chamaram a atenção e eu gostei do jeito dela", conta.

Na última semana do curso, ele tomou coragem e convidou a moça para tomar chá. "Ela disse 'sim'. Também tinha gostado de mim. Depois de um mês de namoro eu já tinha decidido que queria me casar com ela", relata Balaram, que coordena a equipe de garçons do bar de um hotel cinco estrelas de Katmandu.

Casamento - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
As castas definem o status social da população do Nepal e da Índia
Imagem: Arquivo pessoal
À primeira vista, todos os ingredientes típicos para o começo de um relacionamento estavam ali: os dois eram solteiros e estavam apaixonados.

Mas a verdade é que havia um abismo entre eles difícil de equalizar. O que separava o casal não era dinheiro, nem interesses e afinidades. Era algo ainda mais complicado de resolver no contexto cultural de alguns países de maioria hindu, como Nepal e Índia - a diferença de castas.

Mais do que sobrenome, trabalho ou recursos financeiros, o que define o status social nesses dois países é a casta a que a pessoa pertence, determinada no nascimento e por hereditariedade, explica a pesquisadora Dalel Benbabaali, da Universidade de Oxford, que estuda o efeito político e social da estratificação por castas no sul da Ásia.

"A divisão por castas está fortemente enraizada na mentalidade e cultura dessas sociedades. Existem leis que proíbem tratamento discriminatório e muitos negam que haja preconceito por casta. Mas é justamente no momento da escolha do parceiro para o casamento que essa divisão se torna mais clara", diz ela à BBC Brasil.

"As famílias de casta mais alta, muitas vezes, não admitem que seus filhos se casem com pessoas de castas inferiores."

Balaram é Brahmin, considerada a casta mais "alta" na tradição hindu, associada culturalmente aos sacerdotes e professores. A mulher por quem ele se apaixonou, Nitu, é Chhetri (ou Kshatriya), segunda mais alta casta na hierarquia, associada aos "guerreiros" e que compunha a família real nepalesa (o país aboliu a mornarquia e hoje tem um sitema de parlamentarismo multipartidário).

casamento - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Balaram e Nitu se conheceram em um evento de gestão hoteleira
Imagem: Arquivo pessoal
As duas outras castas, em ordem de "hierarquia", são: a Vaishya (associada a funções de comércio, agricultura e pastoreio) e a Shudra (trabalhadores braçais). Na base da pirâmide social estão os "dalits" ou "intocáveis", que não pertencem a essas castas e a quem são delegados serviços "degradantes" na cultura hindu, como manuseio de cadáveres e limpeza de banheiros.

O Manusmriti, mais importante livro sobre as leis hindus, escrito pelo menos mil anos a.C., "reconhece e justifica o sistema de castas como a base da ordem da sociedade". A crença é que as quatro castas (Brahmin, Kshatriya, Vashya e Shudra) se originaram de Brahma, o Deus da criação.

No topo da hierarquia, os brahmins teriam surgido da cabeça de Brahma. Os Kshatriyas, dos braços de Brahma. Os Vashya viriam das coxas e os Shudras, dos pés.

O peso da tradição milenar se revelou bem claro quando Balaram Dhakal anunciou aos pais que se casaria com uma mulher de casta imediatamente "inferior" à dele.

"Minha mãe ficou inconsolável, com muita raiva. Ela dizia: `Mas por que você escolheu uma pessoa de casta inferior? Você tem que se casar com uma Brahmin'", relata Balaram.

Ele desafiou a família e se casou com Nitu, mas as portas da casa dos pais dele nunca se abriram para ela. "Tentei apresentá-la para os meus pais, mas minha mãe ficava irritada e não queria que a minha esposa frequentasse a casa deles."

O pai era mais flexível e aceitava ter contato com a nora. Mas impunha uma condição. "Ele disse que não comeria alimento que fosse preparado pela minha esposa, nem sentaria à mesa com ela para uma refeição", diz Balaram.

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Balaram hoje convive mais a família de Nitu, por causa da rejeição dos pais
Imagem: Arquivo pessoal
Há cinco anos, o casal teve um filho. Os avós quiseram conhecê-lo, mas impuseram a mesma regra: não se sentariam à mesa para comer com o menino.

"Eu me sinto muito mal com isso, porque a minha família acaba não convivendo com meus pais. Eu queria todos à mesa, juntos. Queria que meus pais aceitassem a minha esposa e que tivessem mais contato com o meu filho", afirma Balaram.

Ao contrário dos pais de Balaram, a família de Nitu aceitou bem o casamento. Os pais e a irmã dela convivem bastante com o casal e o filho deles.

De pai para filho

A casta na tradição hindu é passada de pai para filho, num rígido sistema parcialmente responsável por uma sedimentada estratificação social. Integrantes das castas "inferiores" ainda hoje são discriminados e têm menos oportunidade de estudar e enriquecer.

Embora haja leis na Índia e no Nepal proibindo tratamento diferenciado por castas, a divisão pode ser claramente vista nos bairros, escolas, universidades, no preenchimento de postos de trabalho e, principalmente, nos casamentos.

Segundo a professora Benbabaali, 90% dos matrimônios na Índia são entre pessoas da mesma casta.

"E dos 10% que sobram, raros são os casos de casamento entre um dalit e uma pessoa de casta superior, como Brahmin. Geralmente são casamentos entre pessoas de castas superiores", afirma a professora de Oxford.

Embora essa divisão social seja uma característica típica da religião hindu - que acredita que a reencarnação em uma casta inferior ou superior depende do comportamento adotado na vida passada -, esse sistema é tão fortemente enraizado nas comunidades indianas e nepalesas que persiste mesmo entre adeptos do islã e do cristianismo, diz Benbabaali.

"O hinduísmo tem influenciado outros grupos religiosos no sul da Ásia. Mesmo muçulmanos e cristãos seguem sistemas de castas. Essas pessoas, em sua maioria, são hindus que se converteram e, mesmo depois da conversão, mantêm suas identidades de castas."

"Em igrejas católicas, você verá dalits cristãos sentados atrás e perceberá que os padres são, muitas vezes, integrantes das castas superiores. E, em alguns cemitérios muçulmanos, existe segregação por casta, com uma área separada para os dalits. Muitas dessas conversões foram uma tentativa de escapar da opressão de casta, mas o que se vê é que a discriminação persiste."

Casamento 4 - BBC - BBC
Na Índia, 90% dos casamentos são entre pessoas da mesma casta
Imagem: BBC

Policiamento até no Tinder

Benbabaali explica que é possível identificar a qual casta uma pessoa pertence pelo sobrenome e, em muitos vilarejos, todos sabem a casta dos vizinhos.

"Alguns nomes são fortemente associados a uma casta ou outra - Pandit, por exemplo, é um nome comum entre os Brahmins indianos. Mas, nos povoados, todos sabem quem é de cada casta. E existe uma certa estratificação urbana, com ruas só ocupadas por dalits e bairros de Brahmins, por exemplo", afirma a professora.

Segundo Benbabaali, por mais que a resistência em se relacionar com castas diferentes esteja lentamente se reduzindo na Índia e no Nepal, a importância ainda dada a isso pode ser vista até na dinâmica dos aplicativos de relacionamento.

"Mesmo no Tinder, logo depois do primeiro 'oi', 'tudo bem', vem a pergunta: 'Qual é o seu nome todo?'. É um modo de identificar a casta", diz.

No mercado imobiliário da Índia também é possível verificar, conforme a professora, esforços para evitar inquilinos de castas baixas. "Uma forma comum usada para evitar aluguel para muçulmanos ou dalits é anunciar o imóvel destacando que só se aluga para vegetarianos."

Tradicionalmente, quanto mais elevada a casta, maiores as restrições alimentares. Normalmente os Brahmins são vegetarianos, por exemplo. É o caso dos pais de Balaram. "Eles são muito tradicionais. Não comem carne e seguem à risca todos os rituais e costumes da nossa casta", diz ele.

Movimentos pelos direitos dalits

Nos últimos anos, vários movimentos foram criados, principalmente na Índia, em defesa dos direitos dos dalits e pela inclusão social de integrantes de castas consideradas "inferiores".

A Constituição indiana, de 1950, inaugurou uma série de medidas afirmativas com o objetivo de dar oportunidade a grupos marginalizados na hierarquia de castas do país.

Foram instituídas, por exemplo, cotas em instituições de ensino e para cargos no governo, além de assentos no Parlamento e nas Assembleias de Estado. O objetivo era tentar corrigir centenas de anos de discriminação.

No entanto, o preconceito por casta persiste, principalmente em relação aos dalits, considerados "impuros" e, por isso, apelidados também de "intocáveis".

"Existem casos de pais de alunos que protestam contra ter dalits entre os cozinheiros que preparam as refeições das crianças na escola. Alegam que estão poluindo a comida e pedem a demissão deles", relata Benbabaali.

Efeitos sociais e econômicos

Pesquisadores apontam que o sistema de castas tem impacto tanto na desigualdade social quanto no desenvolvimento econômico dos países que adotam essa estrutura.

Em 2009 e 2010, 82% dos dalits na Índia estavam abaixo da linha de pobreza, sobrevivendo com US$ 2 por dia, conforme o Censo de 2011, que, pela primeira vez, levou em conta a divisão de castas.

Para os professores Katherine S. Newman, da Universidade Johns Hopkins (EUA), e Sukhadeo Thorat, da Universidade Jawaharlal Nehru (Índia), o sistema de castas também gera uma alocação "ineficiente" da força de trabalho, ao criar estigmas para determinadas funções, como as relacionadas à tarefa de limpeza, e ao impor barreiras para que dalits exerçam cargos de prestígio.

No artigo Casta e Economia da Discriminação: Causas, Consequências e Soluções, eles destacam que membros de castas "superiores" preferem ficar um período desempregados a atuar em funções tidas como "degradantes" ou "poluidoras" da alma.

Enquanto isso, os dalits são levados ao desemprego ou a atuar em funções marginalizadas.

"Ao impedir a mobilidade da força produtiva, da terra, do capital e da iniciativa privada, o sistema de castas cria segmentações e monopólios. (...) Ao restringir a livre movimentação de mão de obra de acordo com a ocupação, o sistema de castas se torna diretamente responsável pelo desemprego voluntário dos indivíduos de casta elevada, e pelo desemprego forçado de quem está na base (da pirâmide)", dizem.

Alguns dalits, porém, conseguiram superar as barreiras. Em 1997, tomou posse o primeiro presidente dalit da Índia, Kocheril Raman Narayanan.

Eleito pelo Parlamento em julho, o atual presidente da Índia, Ram Nath Kovind, também é dalit, mas sua indicação foi vista com suspeição por ativistas: ele é criticado por nunca ter sido atuante na defesa dos direitos dos dalits. Além disso, a função de presidente na Índia é apenas cerimonial.

Casamento 5 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Rohith Vemula se suicidou dentro do campus de uma universidade
Imagem: Arquivo pessoal
E o estigma de ser dalit é complexo: no ano passado, a Índia se chocou com a morte de Rohith Vemula, um estudante de doutorado de 26 anos que se suicidou dentro do campus da Universidade Central de Hyderabad.

Vemula e outros quatro estudantes dalits foram acusados de terem agredido um membro de um grupo estudantil ligado ao partido nacionalista indiano BJP. A universidade havia decido expulsá-los de suas residências estudantis.

Os jovens dalits negaram terem cometido a agressão. Vemula, que cursava sociologia e integrava um grupo de defesa de estudantes dalits, deixou uma carta antes de se matar.

"Meu nascimento foi um acidente fatal. Eu estava sempre com pressa. Desesperado para começar uma vida. Eu não estou triste. Estou só vazio", disse ele. "Eu sempre olhava as estrelas e queria ser um escritor, um escritor de ciência, como Carl Sagan. Mas, no final, essa é a única carta que eu vou escrever."

Em dezembro de 2015, um mês antes de morrer, ele enviou uma carta ao vice-chanceler da universidade reclamando das "humilhações" sofridas pelos dalits ali.

"Por favor, nos dê veneno na hora da admissão para a universidade, em vez de nos humilhar assim", disse ele, na carta.