Depoimento: Meu pai foi refém das Farc. E isto é o que aconteceu com ele

Annie Correal

  • Federico Rios Escobar/The New York Times

    Soldados das Farc caminham em um acampamento nas montanhas da Colômbia

    Soldados das Farc caminham em um acampamento nas montanhas da Colômbia

A primeira pessoa para quem pensei em telefonar quando soube que o governo da Colômbia e as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) haviam chegado a um acordo de paz, na semana passada, foi meu pai.

Em 1999, meu pai, Jaime Correal Martinz, foi sequestrado pelas Farc. Ele foi capturado por um bando quando voltava do trabalho para casa; foi levado para as altas montanhas perto de Bogotá, a capital; e entregue ao grupo rebelde, que o deteve por mais de oito meses, pedindo resgate.

Enquanto minha madrasta, Samantha, negociava com os rebeldes e cuidava de meus irmãos menores, Nicolás e Lorena, em Bogotá, e eu terminava meu primeiro ano de faculdade nos EUA, meu pai foi transferido de acampamento em acampamento, escondido na selva enquanto aviões militares sobrevoavam. Ele dormiu em 38 lugares diferentes.

Ele não se tornou um alvo por nenhum motivo em particular. Na época, o sequestro para obter resgate era um ato comum na Colômbia, uma das maneiras como os rebeldes financiavam a insurgência, juntamente com o tráfico de cocaína, e ele era considerado um homem rico.

O que meu pai pensaria do acordo de paz com seus sequestradores?

Enquanto meu pai ficou detido pelas Farc, sua empresa de viagens faliu. Nós perdemos tudo. E fomos dos mais sortudos. O conflito que já dura 52 anos envolvendo as Farc, os militares e violentos paramilitares de direita teria cobrado mais de 220 mil vidas, deixado 40 mil desaparecidos e desalojado mais de 5 milhões de pessoas.

A notícia de que os rebeldes das Farc, após quatro anos de negociações, aceitaram depor permanentemente as armas, debandar e unir-se ao sistema político é motivo de comemoração para alguns na Colômbia. É o mais perto que o país chegou de pôr fim ao conflito, a guerra mais longa nas Américas. A paz na Colômbia, o sonho fugaz de milhões que marcharam nas ruas, parece finalmente ao alcance. O presidente Juan Manuel Santos chamou o acordo de porta "para uma nova etapa em nossa história".

Mas em 2 de outubro, quando os colombianos terão a última palavra sobre o acordo de paz votando em um referendo, a decisão não será simples. Sob o acordo, os combatentes das Farc receberão a anistia por crimes como o tráfico de drogas.

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Os que confessarem crimes como sequestros e execuções serão submetidos a cinco a oito anos de mobilidade restrita, mas não à prisão. Durante esse tempo, deverão realizar trabalhos sociais em comunidades afetadas pelo conflito. O acordo enfrenta significativa oposição política, e muitos colombianos estão furiosos.

Meu pai raramente mencionou essa época com as Farc depois que voltou para casa. Certa vez, em uma mercearia, ele apontou para um pacote de bolachas. "Era isso que eles nos davam para comer durante as marchas", disse. Outra vez, contou-me que as botas de borracha dão um bom travesseiro se você colocar uma dentro da outra.

Esses momentos ofereceram visões do mundo distante ao qual ele fora levado, e como ele permanecia na memória. De modo geral, e certamente para nosso benefício, ele fazia brincadeiras sobre o sequestro, chamando-o de "meu ecodesafio" e de férias muito necessárias.

Uma década depois do fato, ele me contou mais. Eu tinha recebido uma bolsa da Transom.org para fazer um documentário de rádio, e nos encontramos em Bogotá. (Uma versão do documentário foi mais tarde transmitida em "This American Life".) Sentado à mesa da cozinha de um amigo, ele rabiscou em um caderno, fumou e falou.

Sim, ele era alimentado, e até lhe davam cigarros. Não, não foi mantido acorrentado. Mas foi detido sozinho durante seis meses, confinado ao seu pequeno galpão, onde ficava acordado à noite pensando, ou escutando em segredo um programa de rádio que transmitia mensagens para os reféns.

Ele também foi obrigado a andar durante dias em terreno acidentado. Certa vez, quando os militares se deslocaram para uma área nas mãos das Farc, ele caminhou durante 11 dias consecutivos, subindo por uma passagem na montanha sob chuva intensa.

Entre os reféns naquela marcha estavam os Ángulo, um casal de trabalhadores de 60 e muitos anos que fora sequestrado perto de Bogotá. A certa altura, disse-me ele, Carmenza Ángulo ficou para trás, pois seus pés haviam inchado e não cabiam nas botas.

Enquanto ela mancava com os pés descalços, seu marido, Gerardo, ficou ao seu lado. Um combatente das Farc os acompanhou na retaguarda. Quando o grupo de meu pai parou para descansar à noite, o combatente reapareceu; o casal não.

O guerrilheiro os havia levado para o meio da mata e, agindo sob ordens, os matara. Eles eram lentos demais. Seus filhos pagaram o resgate e os procuraram durante anos, em vão, contou-me seu filho, Héctor Ángulo. Mais tarde Héctor voltou com uma equipe de investigadores e guerrilheiros capturados para procurar seus ossos.

Meu pai viu de perto a complexidade do conflito: a capacidade de crueldade das Farc, mas também a impotência, senão a inocência, de alguns jovens combatentes. Alguns de seus guardas armados tinham apenas 13 anos. Muitos combatentes tinham sido tirados de suas casas e obrigados a unir-se ainda crianças.

Um destes teve um papel na libertação de meu pai.

No 265º dia em que ele se encontrava no cativeiro, enquanto aguardava no acampamento com vários reféns, ouviram-se tiros do lado de fora dos barracos. Eram os militares colombianos, cerca de 60 soldados. Eles dispararam metralhadoras, atiraram granadas.

Quando o barulho terminou, um soldado usando uma faixa de pano na cabeça se aproximou. "Gente, vocês estão livres", meu pai lembra que ele disse. Os rebeldes tinham fugido.

Entre os soldados estava uma figura menor que os outros, com uma balaclava. Depois da emboscada, ela retirou a máscara e meu pai a reconheceu. Tinha cerca de 17 anos e era uma combatente das Farc. Ele a havia visto lavando pratos em um acampamento.

A jovem tinha escapado, arriscando-se a ser executada pela guerrilha, e se entregado aos militares. Se eles libertassem seu irmão de 13 anos, que fora forçado a entrar nas Farc, ela os levaria até os prisioneiros, incluindo um muito importante, o jornalista Guillermo Cortés.

Ela ajudou a libertar cinco reféns. Na época, foi um dos maiores salvamentos da história da Colômbia. (Não está claro o que aconteceu com ela ou com seu irmão.)

Depois do resgate, minha família mudou-se imediatamente para o Panamá, onde tínhamos raízes familiares. Raramente voltamos à Colômbia, mas meu pai acompanhava as notícias. Nos anos seguintes, as Farc sofreram uma longa série de reveses em batalhas, que acabaram levando a negociações de paz em Oslo, na Noruega, e em Havana, Cuba. Durante o processo de paz, meu pai continuou profundamente cético dos guerrilheiros, mas esperançoso.

O acordo finalmente alcançado na semana passada era algo que ele, uma vítima das Farc, poderia endossar?

Infelizmente, eu não podia telefonar para lhe perguntar.

Meu pai morreu em junho, após uma série de infartos, aos 63 anos. Afinal, o conflito sobreviveu a ele, por apenas alguns meses.

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Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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