A volta de Elias Canetti

Tomás Eloy Martínez

Tomás Eloy Martínez

Poucos autores deixam uma impressão de genialidade tão imediata quanto Elías Canetti, nascido na Bulgária. Logo que o leitor se aventura pelas primeiras páginas de seus livros, sente-se iluminado por uma sabedoria mais antiga que o tempo.

Foi em seu ensaio sobre a sobrevivência e o poder que, pela primeira vez, li uma reflexão clara (e estranhamente original) sobre a sensação de superioridade e de alívio que sentem aqueles que estão de pé diante que alguém que morreu. Escrito assim parece uma banalidade, mas quando Canetti o enuncia, mostra como damos pouca atenção aos seres humanos e ao significado profundo de gestos e movimentos que se repetem todos os dias.

Foi também Canetti quem explicou melhor do que ninguém por que, para sentir-se "o centro de tudo", o escritor tcheco Franz Kafka se refugiava na pequenez, no silêncio, na leviandade. Quando estuda os diários e a correspondência de Kafka, Canetti o revela como um escritor novo, recém-descoberto. O surpreendente é que consegue isso usando muito poucas palavras.

Fazia mais de vinte anos que seus livros estavam em falta nas livrarias da América hispânica até que, no final de agosto, reapareceram em edições luxuosas e caras, inacessíveis nessas épocas de crise.

Seu primeiro editor em espanhol foi o empenhado Mario Muchnick de Buenos Aires, que publicou seis ou sete de suas maiores obras. Muchnik teve a audácia de ir atrás de Canetti no Grand Hotel de Estocolmo na mesma tarde, em 1981, em que ele ia receber o prêmio Nobel que o concederam com toda justiça. Tomou-o pelo braço e ficou um tempo conversando com ele. Canetti não concedia entrevistas, mas não podia recusar o diálogo com um de seus editores. Muchnick publicou os detalhes dessa conversa em sua autobiografia de 1999.

Os candidatos ao Nobel de 1981 eram Canetti, o argentino Jorge Luis Borges e o colombiano Gabriel García Márquez, que receberia o prêmio no ano seguinte. García Márquez sempre foi muito discreto e evitou pronunciar-se sobre o fato de que Borges fora um postergado perpétuo. Ele citou, sim, que alguns acadêmicos de Estocolmo valorizavam muito mais seus poemas do que suas ficções.

Segundo Muchnik, Canetti disse algo parecido naquela véspera de glória: "Eu não daria o prêmio a Borges. E não por razões políticas, que não são poucas, inclusive a medalha que ele recebeu das mãos desse tal Pinochet. Não o daria porque sua literatura é trivial, bem escrita mas superficial como o xadrez."

Canetti era um gênio e, como escreveu Susan Sontag, "era também parcial e injusto com os povos sem história". Por isso entendia tão mal a Borges, que, sendo originário de um povo sem história, sentia a necessidade de criar-lhe uma.

Tudo o que Canetti passou em sua longa vida parece desmedido. Oriundo de Rustschuk, um povoado búlgaro do baixo Danúbio, viveu mudando de casa desde os cinco anos. Em 1911, levaram-no a Manchester; em 1913, depois da morte de seu pai, a Viena; entre 1916 e 1920 esteve entre Zurique e Lausana; 1921-22 na escola em Frankfurt; 1924 em Viena; no final dos anos 20 visitou Berlim; logo voltou a Viena, deteve-se em Paris e, por fim, em 1938, assentou-se definitivamente em Londres, de onde raras vezes saiu até sua morte em Zurique, em 1994 aos 89 anos.

Diferente de quase todos os homens, que dispõem de uma só língua para o amor, para as memórias e a desgraça, Canetti teve pelo menos quatro línguas de infância: o ladino, "minha língua da cozinha", como ele dizia; o búlgaro; o alemão, que seus pais o proibiram de falar e ler até os sete anos; e o inglês de suas primeiras leituras. Poderia ter escrito em qualquer um desses idiomas, mas decidiu fazê-lo em alemão, como uma afirmação de seu ser judeu. Canetti seduz com palavras, porque o leitor adivinha nele, para além de sua autêntica humildade, uma rara capacidade para entender tudo. Parece estar voltando das culturas mais remotas, dos sentimentos mais primários, das experiências mais revolucionárias: como se fosse o sobrevivente de um lugar em que todas as coisas já aconteceram.

Começou a escrever seu primeiro livro, "Auto-de-fé", em abril de 1927, quando ainda estudava química e morava num quarto em Viena cujas janelas davam para o zoológico e o asilo de loucos Steinhof.

A obra de sua vida é o monumental ensaio "Massa e poder" (1960), de leitura imprescindível para quem quer entender o populismo, a demagogia e o desprezo que os homens de poder sentem pelas massas a quem manipulam.

Cada vez que o autor se aproxima de qualquer versão da massa (o trigo, o bosque, o fogo, a chuva), coloca em movimento, simultaneamente, as disciplinas mais díspares; da antropologia salta com naturalidade para a história das religiões, dali para a poesia e para a anatomia patológica, alcançando em cada caso o milagre (como chamar de outra coisa?) de transfigurar essa imensidão numa criatura viva, pequena, verificável, com a qual o leitor pode se identificar facilmente.

A história, abraçada pela linguagem de Canetti, é como se fosse a última oração de uma tribo de sobreviventes, a ladainha de um louco que se acredita invulnerável. E que talvez seja invulnerável.

Apesar da imponência de "Massa e poder", cujas 500 páginas nunca citam Marx e incluem apenas uma referência mínima a Freud (uma nota de rodapé casual), o texto mais revelador sobre Canetti é, sem dúvida, "A Língua Absolvida" (1977), primeiro volume de sua autobiografia, que deixa no leitor a sensação de que a linguagem foi esgotada, esvaziada de suas melhores substâncias e que já não é possível dizer mais nada com essas mesmas palavras.

São inesquecíveis o fascínio que o narrador sente pelas bochechas coradas de uma aldeã, o terrível grito da mãe no jardim quando o pai morre, a mansa aceitação do sexo como um tabu; e o descobrimento, em Zurique, de que o preconceito antijudaico não se afastará de sua vida.

Quando recebeu a notícia do prêmio Nobel, estava na casa de seus sogros da Bavária, almoçando. Sua esposa Hera resvalou na concha com a qual servia a sopa, sujando a tolha de mesa. Canetti mastigava um pedaço de pão e, com o susto, deixou-o cair no prato.

Ao advertir que a vida familiar não voltaria nunca a ser a mesma, sentiu que o Nobel o empobrecia, o escravizava. Os deuses o haviam assinalado com seu dedo de luz, e ser um escolhido o atormentava.

Enfrentou a adversidade da glória recolhendo-se em sua casa de Londres, da qual não saiu até quando viajou a Zurique para morrer.

Tradução: Eloise De Vylder

Tomás Eloy Martínez

Morto em 31 de janeiro de 2010, o argentino Tomás Eloy Martínez, analista político e escritor, escreveu livros como "O voo da Rainha" e "O Cantor de Tango".

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