Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Dados mostram a relação entre o bolsonarismo e a desinformação na pandemia
Oswaldo E. do Amaral*
Passados quase 15 meses do início da pandemia no Brasil, muitos brasileiros acham que a cloroquina funciona contra a Covid-19 e que o novo coronavírus foi criado pelo governo chinês. Impressiona o número de pessoas que creem em afirmações sem nenhuma base real. O que explica isso?
Se estivéssemos conversando sobre invasões de alienígenas ou terraplanismo, não seria tão dramático. Mas estamos falamos de percepções que podem facilitar mortes, muitas mortes. Os dados aos quais nos referimos são de uma pesquisa nacional, realizada pelo Instituto da Democracia, entre 20 e 27 de abril, com 2031 entrevistados e margem de erro de 2,1 pontos percentuais.
Os números são muito ruins para aqueles que acreditam na ciência. 30% dos entrevistados acham que a cloroquina combate a Covid-19. Isso depois de dezenas de estudos demonstrarem que a cloroquina não funciona e que pode até piorar o quadro clínico dos pacientes, informação repetida à exaustão pela imprensa séria. E 51% concordam com a afirmação de que o novo coronavírus foi criado pelo governo chinês. Não há nenhuma evidência concreta até o momento de que isso seja verdadeiro.
Gostar mais do presidente aumenta a chance de acreditar em afirmações sem base real
Para tentar compreender um pouco melhor quem são as pessoas que acreditam nessas afirmações que não possuem nenhuma base na realidade é importante ir além da descrição dos dados. Para isso, foi feita uma análise multivariada em que estudamos os efeitos do nível de escolaridade, da idade e do sexo do entrevistado sobre a resposta dada, e também o impacto dos resultados de uma pergunta em que pedíamos para o entrevistado declarar o quanto gostava do presidente Jair Bolsonaro em uma escala de 1 a 10. A vantagem desse tipo de análise é que ele permite isolar o impacto de cada fator sobre as diferentes respostas. Abaixo, mostramos a distribuição de respostas para o apreço ao presidente Jair Bolsonaro. Vê-se uma concentração na categoria de 1-3 pontos, que implica pouco apreço.
Nos dois casos mencionados, tanto o nível de escolaridade do entrevistado quanto "gostar mais" do presidente Bolsonaro (8 a 10 na escala) afetaram de maneira estatisticamente segura as respostas. Ou seja, ter chegado a cursar o nível superior reduzia a chance de acreditar em afirmações sem nenhuma base concreta. Do outro lado, gostar de Jair Bolsonaro ampliava as chances de acreditar nelas.
Para ilustrar os achados da análise, vamos tomar o caso em que pedimos ao entrevistado para declarar se a afirmação "a cloroquina combate a Covid-19" era verdadeira ou falsa. Ter cursado o ensino superior ampliava em cerca de duas vezes a chance de responder que a afirmação era falsa com relação a quem cursou apenas o ensino fundamental. Já gostar de Jair Bolsonaro ampliava em seis vezes a chance de acreditar que a afirmação era verdadeira com relação àqueles que demonstraram não possuir muito apreço pelo presidente (1 a 3 na escala).
Nos gráficos, é possível ver de forma mais simples como as preferências políticas e as respostas dos entrevistados estão conectadas. Nos dois casos, a porcentagem dos que acreditam em afirmações sem base real aumenta conforme cresce o apreço pelo presidente. Para tomar de novo o caso da afirmação sobre a cloroquina, entre os que gostavam menos do presidente, apenas 20% disseram que a afirmação era verdadeira. Entre os que gostavam mais, a porcentagem subiu para 54%.
Nossa pesquisa de nível individual vai ao encontro de estudos realizados com dados agregados no Brasil e nos EUA que mostraram a ligação entre preferências políticas e o comportamento com relação a medidas que tentaram promover o isolamento social, especialmente em contextos de polarização ideológica. Os trabalhos apontam para a influência que determinados comportamentos das lideranças políticas podem ter sobre sua base de apoio mesmo sobre temas que não são estritamente políticos.
Nesses 15 meses de pandemia no Brasil não foram poucas as vezes que o presidente e seu entorno imediato, notadamente seus filhos, defenderam práticas sociais, medicamentos e posições políticas que claramente contribuíram para a desinformação da população. Em um contexto pandêmico, em que não contamos com as políticas públicas adequadas para enfrentar a Covid-19, a desinformação feita de forma deliberada pode também ajudar a matar.
Nota metodológica: A edição de 2021 da pesquisa nacional "A Cara da Democracia" foi realizada pelo Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação. Foram entrevistados 2031 brasileiros de todas as regiões do país entre 20 e 27 de abril. A margem de erro é de 2,2 pontos percentuais considerando um intervalo de confiança de 95%. A amostra representa a população eleitoral brasileira de 16 anos ou mais distribuída proporcionalmente à população eleitoral existente em cada uma das cinco regiões do Brasil: Norte, Centro-Oeste, Sudeste, Nordeste e Sul. Os municípios foram selecionados probabilisticamente através do método PPT (probabilidade proporcional ao tamanho) tomando como base o número de eleitores de cada município. A amostra obedeceu ainda cotas de sexo, idade, escolaridade e renda familiar dentro de cada setor censitário. Esta edição da pesquisa foi realizada presencialmente, seguindo os protocolos de segurança conforme orientação dos órgãos competentes, tais como uso de máscaras e álcool em gel e distanciamento seguro.
*Oswaldo E. do Amaral é professor de Ciência Política na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e diretor do Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop) da mesma instituição.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.