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Reportagem

Raquel Dodge: autoridades do Rio dificultaram acesso da PGR a caso Marielle

Dois dias após os assassinatos da vereadora do PSOL Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, ocorridos em 14 de março de 2018, a então procuradora-geral da República Raquel Dodge viajou ao Rio de Janeiro para colher informações e dar apoio ao Ministério Público do Rio na investigação.

Embora o crime estivesse na competência estadual, a procuradora-geral entendeu que a importância do episódio exigia um olhar próximo da PGR (Procuradoria-Geral da República) porque poderia ser necessária a federalização da investigação.

No final de seu mandato, em setembro de 2019, Dodge pediu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) a federalização da investigação. A solicitação foi negada pela Terceira Seção do tribunal em maio de 2020.

A investigação ficou estagnada até este ano, quando a Polícia Federal entrou no caso, a pedido do ministro Flávio Dino (Justiça). Isso permitiu a obtenção de novos elementos, como a delação premiada de um dos envolvidos, o ex-policial Élcio de Queiroz.

Passados cinco anos do crime e diante dos recentes avanços, Dodge revelou, nesta entrevista ao UOL, detalhes de como autoridades do Rio agiram contra a federalização, chegando a dificultar seu acesso a documentos.

Um exemplo, segundo Dodge: a 28ª Vara Criminal do Rio, responsável pelo inquérito da Polícia Federal sobre obstrução do caso Marielle, retardou o cumprimento de decisão do STJ para que Dodge tivesse acesso aos dados da investigação. A decisão do STJ foi de 29 de agosto de 2019, mas o processo só chegou à PGR em 11 de setembro - cinco dias antes do fim do mandato dela.

Depois da vara fornecer códigos de rastreamento errados, Dodge diz que só obteve os documentos porque mandou alguém procurar dentro dos Correios. O juiz responsável pelo inquérito nega que tenha retardado o acesso da PGR ao caso depois que o STJ proferiu decisão (leia reportagem aqui). Procurado, o Ministério Público do Rio disse que solicitou recentemente o apoio da PF às investigações do caso, mas não comentou o episódio específico ocorrido em 2019.

UOL - Como foi a sua entrada na investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco?

RAQUEL DODGE: No dia seguinte pela manhã, eu cheguei muito cedo na Procuradoria e percebi alguns dados que chamaram atenção. Não era uma vereadora qualquer. Era uma vereadora negra, da periferia, que lutava pelos direitos dos mais pobres e que foi assassinada de uma forma muito estranha, em uma aparente situação de emboscada. Me pareceu que havia ali um crime não contra a pessoa em si, mas contra a democracia, por causa do mandato dela. Naquele dia haveria uma sessão importante no Supremo, mas resolvi ir ao Rio. Fui me inteirando ao longo da manhã, liguei para o procurador-geral de Justiça do Rio, dr. Eduardo (Gussem), e disse 'acho que é um crime importante, temos que prestar atenção'. Liguei para o ministro Raul Jungmann, da Segurança Pública, e avisei que estava indo ao Rio. É óbvio que quando a procuradora-geral da República vai ao encontro de um caso, ele assume uma importância nacional.

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A senhora sentiu resistência do MP do Rio em recebê-la e compartilhar as informações?

DODGE: [No início] não. O procurador-geral Eduardo [Gussem] me recebeu em seu gabinete e pedi que fizéssemos uma reunião de equipes. Foi feita no mesmo dia e logo em seguida eu fui informada que o ministro da Segurança Pública havia chegado ao Rio. E eu havia pedido para falar com o secretário de Segurança Pública do Rio, que era o interventor federal, o general Braga Netto. O Rio de Janeiro estava em intervenção federal na segurança pública, na área que investiga crimes, dado o elevado número de homicídios, a atuação das milícias, o tráfico de drogas e de armas. Ao longo da tarde, eu perguntava: Quem é o chefe da delegacia sob jurisdição do local onde ocorreu o fato? A delegacia estava sem delegado titular há anos. Eu disse: então, o caso parece mais importante porque uma das maneiras de atrasar um julgamento é escolher o local em que você comete o crime ou dispensa o corpo. Eu aprendi isso quando trabalhei no Acre no caso [do ex-deputado federal] Hildebrando Pascoal, quando desbaratamos a quadrilha e colocamos na cadeia. Lá, o esquema era: você despeja o corpo no território de jurisdição de uma delegacia cujo titular era integrante da milícia ou não havia delegado de plantão no período. Quando percebemos essa dinâmica, desvendamos os membros da organização criminosa e denunciamos 34 pessoas naquela ocasião, entre delegados e agentes de polícia. [Acusado de liderar um grupo de extermínio, o ex-deputado e ex-policial foi condenado a mais de cem anos de prisão por diversos crimes.]

O que aconteceu?

DODGE: Eu convidei o procurador-geral Eduardo para ir comigo até o secretário de Segurança Pública. E aí o general [Braga Netto] me disse: "Doutora Raquel, eu acabei de convidar uma pessoa para assumir a titularidade da delegacia e uma para a titularidade do caso". Eu fui apresentada aos dois delegados, um deles era o Giniton Lages. Bom, ali eu fiquei sabendo que as providências haviam sido tomadas e que a investigação ia ser aberta e conduzida a sério. Eu vim para Brasília, mas no mesmo dia eu instaurei um incidente de acompanhamento da investigação para ir monitorando se havia progresso ou necessidade de federalização logo no início.

Depois de algum tempo, um dos apontados inicialmente como suspeito no crime, Orlando Curicica [acusado de chefiar milícia na zona oeste do Rio], procurou o Ministério Público Federal para prestar um depoimento que mudou a investigação. Como a senhora ficou sabendo disso?

DODGE: Esse preso havia sido transferido de Bangu para o presídio federal de Mossoró (RN). Ele ficou sabendo pelo juiz federal da unidade prisional que tinha o direito de falar com um procurador da República. Aí o juiz providenciou e ele conversou com dois procuradores. Os dois colheram um primeiro depoimento dele, era uma tentativa de estabelecer confiança. Verificamos a verossimilhança e a equipe devolveu o assunto pro RN para colher um segundo depoimento que detalhava mais coisas. Encaminhei tudo imediatamente para o promotor natural, o doutor Eduardo [Gussem]. O que aconteceu? Eu não vi mudança no rumo da investigação. Orlando basicamente dizia: 'O inquérito da Polícia Civil do Rio está dizendo que os executores são tais, mas não são, isso é falso'. A investigação tomou um rumo errado. Quando ele diz isso e aponta uma pessoa específica que estava sob a minha jurisdição, que era um membro do Tribunal de Contas do Rio [Domingos Brazão], eu abri um inquérito no âmbito da minha competência para verificar se houve desvio na investigação e mando para a Polícia Federal. E o desvio foi comprovado com a participação de um delegado da Polícia Federal do Rio, esse membro do tribunal de contas e outras pessoas. Eles engendraram uma história que encaminhou a investigação num determinado rumo. O inquérito foi concluído e eu apresentei uma denúncia ao STJ [Domingos Brazão foi posteriormente inocentado da acusação de obstruir a investigação do caso Marielle].

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A senhora mandou os depoimentos para o MP do Rio, mas isso não mudou a condução da investigação. Por isso a senhora decidiu pedir à PF para investigar uma obstrução?

DODGE: Eu enviei todo esse material e eles anunciaram que iam fazer uma denúncia, que estavam concluindo, e que o rumo era tal. Mas eu abri essa investigação na Polícia Federal porque havia esse desvio na apuração, e a denúncia seria feita exatamente na linha do que o Orlando Curicica dizia. Acontece que eu não tive acesso a esse inquérito da Polícia Federal. Por alguma razão, a PF registrou esse inquérito na mesma vara da Justiça do Rio que conduzia o outro inquérito da Polícia Civil. [O inquérito da PF tramitou na 28ª Vara Criminal do Rio.] Tive que entrar com uma medida cautelar no STJ para pedir acesso ao meu inquérito. Isso levou meses. Eu consegui uma liminar, mas o MP do Rio dava parecer contrário a que eu tivesse acesso e o juiz do Rio decidia contra, não me deixava ter acesso. Então eu tive muita dificuldade. Depois eu nomeei a doutora Márcia Morgado, que era procuradora-chefe regional, para retirar os autos conforme já autorizado pelo STJ, mas eu não conseguia. Tive que pedir novamente medida liminar por descumprimento da decisão. Primeiro, a diretora da secretaria informou o número errado do AR, que é um registro que os Correios têm quando fazem a remessa de uma correspondência. Depois, disse que foi engano e informaram um novo número. Além disso, a diretora da secretaria disse que tinha colocado o inquérito nos Correios, mas que tinham entrado em greve, coisa que nenhum jornal noticiava. Eu sei que, no fim, a doutora Márcia teve que ir dentro dos Correios, retirou os autos de lá e me mandou pelo malote. Chegou no meu gabinete às 22h, a poucos dias de terminar meu mandato. Isso inclusive precipitou minha sucessão [na PGR], que ainda não estava anunciada. Aí eu coloco uma equipe para trabalhar sobre isso.

Nota da edição: Procurado pelo UOL, o juiz André Ricardo de Francisco Ramos, titular da 28ª Vara Criminal do Rio responsável pelo inquérito da Polícia Federal sobre obstrução do caso Marielle, afirmou que concedeu cópia do processo "imediatamente" à então procuradora-geral da República Raquel Dodge depois que o Superior Tribunal de Justiça proferiu essa determinação. Ele negou que tenha retardado o acesso da procuradora ao processo. Leia mais aqui.

(...)

Nesse ínterim, aconteceu o seguinte. Um advogado, doutor Erick (Venâncio), representante da OAB nacional no CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), dá uma liminar [a pedido do MP do Rio] mandando paralisar o meu incidente de deslocamento de competência. Eu chamo o doutor Erick e digo que a atribuição é minha. O CNMP não tem nem jurisdição sobre o procurador-geral, como o CNJ não tem sobre ministro do Supremo, esse paralelo é evidente. Então todos esses entraves se acumulavam e atrasavam algo que poderia ter ocorrido mais fluidamente, que era uma atuação mais forte da Polícia Federal nesse caso.

Quais foram os argumentos para pedir ao STJ a federalização da investigação?

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DODGE: No final, eu pedi o incidente de deslocamento (federalização) porque havia várias evidências. O Rio sob intervenção federal significava que os índices de desvendamento de homicídios já eram muito baixos. A intervenção era um sinal eloquente de que havia essa incapacidade. Aí teve o desvio da investigação, que é um elemento importante. Havia provas no inquérito da Polícia Federal de que os verdadeiros culpados não eram aqueles inicialmente apontados contra os quais a denúncia já estava sendo preparada. Uma série de coisas que foram se somando.

(...)

Ao investigar esse desvio, a Polícia Federal também coletou outras informações, mas naquele momento não havia mais tempo hábil para processar, porque o inquérito chegou ao meu gabinete quando faltavam dez dias para o fim do meu mandato. Havia provas ali preservadas, rumos de investigação decifrados. E eu, numa leitura que fiz, percebi que a Polícia Federal tinha sido muito eficiente nesse período pequeno de poucos meses em que o doutor Leandro Almada [hoje superintendente da PF no Rio] presidiu esse inquérito e desvendou essa questão. E essa é a impressão que eu tenho. Esse novo inquérito de agora se alimenta dessa investigação inicial daquele período.

A senhora avalia que foi um equívoco do STJ não conceder a federalização, já que a entrada da PF no caso permitiu novo avanço na apuração?

DODGE: Vou te responder assim: eu estou muito segura de que naquele pedido havia todos os critérios constitucionais para federalização. A dificuldade de investigar, o desvio na investigação, o eventual apontamento de pessoas inocentes como culpadas, deixando os culpados soltos. Havia uma evidência de que a Polícia Federal em poucos meses conseguiu uma eficiência na investigação muito rápida. Então havia ali todos os elementos para isso. O incidente tem uma fase de produção de provas que lá no STJ nem houve. Houve um julgamento prematuro, eu fui sucedida e logo eles arquivaram. Não estou fazendo uma crítica ao tribunal, estou fazendo uma expressão de certeza de que havia ali todos os critérios presentes. Passado um ano e meio, não haviam descoberto (os autores) e com todos esses percalços no caminho, inclusive essa participação do próprio CNMP em uma situação que ele não tinha atribuição, paralisando uma investigação que eu tinha iniciado, também é um sinal de que havia ali uma confluência de forças para que não houvesse uma investigação eficiente.

Por todos esses fatos, a senhora identifica que alguma autoridade pública tenha cometido algum crime ao atrapalhar a apuração?

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DODGE: Eu não tenho nenhum elemento para levantar essa suspeita. Eu só tenho a relatar exatamente o que relatei, que houve e não houve.

Como a senhora interpreta o avanço feito pela PF recentemente no caso?

DODGE: Eu acho que a Polícia Federal brasileira é uma das melhores do mundo. Trabalha com muito critério, muito rigor, e havia nesse inquérito que eu examinei elementos muito claros da competência da PF. Eu estava muito segura que a entrada da Polícia Federal ia ajudar no desvendamento desse crime. E eu reconheço na investigação de agora sinais dos elementos colhidos naquele inquérito. Ali se preservou muita coisa, porque colhidos próximo à época dos fatos. Tomara que a gente finalmente saiba qual a motivação, o mandante e os intermediários. É importante para o país e para a democracia. Não é corriqueiro matar um membro do Legislativo.

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