Amanda Cotrim

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Governo Milei impede evento sobre ditadura; funcionários falam em censura

"Sem aviso prévio" e de modo "arbitrário". Foi assim que funcionários da Secretaria de Direitos Humanos da Argentina se referiram à suspensão do Seminário Internacional sobre Políticas de Memória, referência na região, que ocorre desde 2008, em Buenos Aires. O evento foi impedido de acontecer na semana passada. Em contato com o UOL, os funcionários acusaram o governo Milei de censura e afirmaram que a Secretaria de Direitos Humanos está vivendo um processo de sucateamento das políticas públicas de memória.

Com o tema "Nunca mais", numa referência ao ciclo de celebrações dos 40 anos de retomada da democracia argentina e o fim da ditadura civil-militar no país (1976-1983), o evento estava previsto para acontecer no simbólico Centro Cultura da Memória Haroldo Conti. Declarado patrimônio da humanidade da Unesco, o centro fica no prédio da antiga ESMA (Escola Superior de Mecânica da Armada), uma unidade da Marinha argentina que foi um dos maiores centros de tortura do país durante a ditadura.

Horas antes do início do seminário, os funcionários da secretaria foram surpreendidos com um e-mail determinando a suspensão da realização do evento nas dependências dos prédios estatais pelo secretário de direitos humanos, Alberto Banos, que também teria proibido os funcionários da pasta de participarem das atividades.

O UOL teve acesso ao e-mail informando que as atividades anunciadas sobre o tema "Reflexões, Arquivos e Testemunhos: 40 anos nunca mais", nos dias 18 e 19 de outubro, não estavam autorizadas pela secretaria e, por isso, seriam canceladas. "Vamos tomar medidas pertinentes para concretizar essa decisão", diz o e-mail, assinado pela secretária particular do Secretário de Direitos Humanos da Argentina.
O evento internacional reúne desde 2008 pesquisadores de todo o continente que pesquisam e estudam temas relacionados à memória e aos direitos humanos. Neste ano, mais de 600 participantes estavam confirmados, entre eles brasileiros. O seminário foi suspenso no último minuto, sem grandes explicações sobre as razões.

Os trabalhadores do Centro Cultura da Memória Haroldo Conti chamaram a suspensão de "censura". "Em respeito às centenas de participantes que estavam com a passagem comprada para acompanhar o seminário em Buenos Aires, os trabalhadores do Centro de Cultura decidiram manter o evento e transferir as atividades para espaços de organizações de direitos humanos, já que a proibição era de usar os prédios associados ao Estado.

Uma das organizações que "salvou" o evento foi as Mães da Praça de Maio, afirmou ao UOL a delegada da Associação de Trabalhadores do Estado da Secretaria de Direitos Humanos, Ana Gonzalez. "Fizemos o evento com garra e resistência. Contamos com o apoio de ex-funcionários que, sabendo da situação, vieram nos ajudar para que o evento não fosse suspenso por falta de espaço", disse Ana, que trabalha há 14 anos no Centro Cultura da Memória Haroldo Conti.

Segundo a delegada sindical, o secretário de direitos humanos Alberto Banos tinha conhecimento sobre a organização do seminário desde março. Ela acusa o governo Milei de ser negacionista. "Essa censura não foi algo pontual. Essa gestão é negacionista sobre os crimes da ditadura. Estamos sofrendo uma censura generalizada, com demissões de funcionários, sucateamento das políticas públicas de memória, sem orçamento para manter os projetos funcionando", afirmou.

De acordo com Gonzáles, ao menos 20 funcionários ligados à Secretaria de Direitos Humanos foram demitidos nos últimos 20 dias, sendo mais de 100 no ano. "Muitos dos demitidos vieram voluntariamente nos ajudar a seguir com o seminário, nos auxiliando a transferir as atividades para as organizações de direitos humanos e assim impedir que o evento fosse cancelado", disse emocionada.

Funcionários da Secretaria de Direitos Humanos com os quais a reportagem conversou sob condição de anonimato afirmaram que a atual gestão não tem experiência com políticas públicas, além de agir de modo "excessivamente" ideológico.

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De acordo com Gonzáles, a diferença da gestão Milei para outros governos menos alinhados com as políticas de direitos humanos é que a atual "não tem conhecimento sobre os critérios que permeiam as políticas públicas". "Aqui, as discussões são básicas, o que demonstra total falta de experiência desse governo que não sabe o mínimo sobre gestão estatal e acredita que tudo é uma questão de opinião", disse à reportagem.

Os funcionários também denunciam que as atividades do Centro Cultura da Memória Haroldo Conti estão paradas porque o atual secretário de direitos humanos ainda não nomeou nenhum responsável pela direção do centro. "Estamos mantendo as atividades graças à coragem e à iniciativa da equipe, porque o centro está totalmente sem direção. É importante que o Centro Cultura da Memória Haroldo Conti continue funcionando, com suas políticas de memória. Não vamos abandonar esse lugar e nem o seu legado", afirmou Gonzáles.

Segundo a Associação dos Trabalhadores do Estado da Secretaria de Direitos Humanos, todas as políticas públicas de direitos humanos da Argentina estão paradas, sem verba. "Não temos orçamento. Todos os espaços de memória na Argentina estão funcionando graças aos trabalhadores que, mesmo sem dinheiro, tentam manter as atividades, principalmente com as escolas públicas do país", afirmou Gonzáles.
Em um comunicado, os delegados da Associação de Trabalhadores do Estado da Secretaria de Direitos Humanos afirmaram que a medida de cancelar o Seminário Internacional sobre os 40 anos da ditadura militar foi "absolutamente arbitrária". "Só podemos conjecturar os motivos: tentar impedir o debate democrático sobre políticas de memória, que é o objetivo final do seminário. Deve-se esclarecer que não há nenhuma instância de avaliação ou seleção das apresentações que são apresentadas ou de seu conteúdo, porque a intenção é que todas as vozes que tenham algo a dizer sobre o assunto possam se expressar lá ", disse a nota.

A Argentina é considerada país de referência sobre políticas de memória, principalmente sobre o tema da ditadura, tendo sido o país que julgou e condenou militares pelos crimes cometidos durante o regime militar. O período histórico é tão importante para os argentinos que o país instituiu um feriado nacional, em 24 de março, data do golpe militar, para que os cidadãos "lembrem de não esquecer" os crimes cometidos pelo Estado.

A reportagem do UOL entrou em contato com a assessoria de imprensa da Secretaria de Direitos Humanos da Argentina e com o assessoria de imprensa do Ministério da Justiça, pasta à qual a secretaria está subordinada, questionando o cancelamento do seminário e as denúncias de censura, sucateamento de políticas públicas de memória e demissões de funcionários da secretaria de direitos humanos, mas não teve resposta até o momento. O espaço segue aberto.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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