Caçadores do Brasil ignoram lei e divulgam abate de animais na internet
Caçadores, que se dizem "snipers" (franco-atiradores), confessam em vídeos à disposição no Facebook e no YouTube a eliminação de veados-catingueiros, pacas, antas, cutias, aves de várias espécies e até mesmo de onças pardas no Brasil. Os atiradores se sentem à vontade para exibir as caças como troféus na internet.
"Hoje eu matei um veado-catingueiro, ontem foi uma fêmea", diz em vídeo, em seu canal no YouTube, o caçador que se intitula "Sniper de Minas". No vídeo, em que o animal aparece abatido com um tiro na cabeça, o caçador só não mostra o rosto.
No resto tudo é divulgado, até o nome de um suposto anunciante do canal: a Casa do Caçador, no Maranhão. Em outro vídeo, as vítimas do "Sniper de Minas", que costuma caçar perto de uma lagoa da rodovia BR-040, que liga Minas Gerais ao Rio de Janeiro, são duas cutias.
A Casa do Caçador, no Maranhão, disse ao UOL que só anuncia na internet e vende armas de pressão que são legalizadas, não armas de fogo.
A exemplo de outros vídeos que mostram caçadas do "Sniper de Minas", as cenas do abate do veado catingueiro e das cutias estão no ar na internet desde o ano passado, com milhares de visualizações. Mas, até hoje nenhuma providência foi tomada para investigar o "Sniper de Minas" e outros caçadores, passíveis de punição pela Lei de Crimes Ambientais de nº 9605. Aprovada em 1998, a lei prevê uma pena de até seis anos de prisão para os caçadores de animais silvestres.
A coluna procurou o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) para saber o número de punições nos últimos anos devido à caça de animais silvestres, mas não obteve resposta até o fechamento deste texto.
Youtubers caçadores demonstram saber que estão à margem da lei
O canal "Sniper de Minas" conta com mais de 60 mil seguidores, mas há pelo menos outros 100 canais que se dedicam a difundir a caça predatória encontrados pela coluna. Usam pseudônimos como "Alemão Caçador" (60 mil seguidores), "Sniper 007", "Fall Caçador" e "Pedrinho Caçador Sniper".
Criados, em sua maioria, há cerca de dois anos, esses canais se transformaram em uma espécie de comunidade, em que os caçadores trocam entre si vídeos, dicas e experiências. Na maioria das vezes, recebem elogios dos espectadores.
Alguns apresentam o que seriam nomes reais. "Atire sempre para matar", diz, depois de abater um cervo, um caçador que se identifica como Ramão dos Santos.
Boa parte dos vídeos é gravada por celulares ou câmeras acopladas às armas. Os caçadores não escondem que têm a noção de que divulgam online um crime contra a fauna.
"Podia ser regulamentado caçar com responsabilidade, mas não é. Sou criminoso desde criança porque caço desde pequeno, era meio de sobrevivência. E hoje eu caço porque eu gosto, eu gosto demais disso aqui", conta o "Alemão Caçador" em um vídeo que mostra o abate de um veado.
Javalis têm caça permitida, mas uso de cães torna a prática controversa
Também são difundidas, com menor intensidade, a caça com a ajuda de cachorros. Essa prática é usada principalmente na caça aos javalis, que foi liberada pelo governo sob o argumento de que há excesso de animais e que eles vêm destruindo plantações de milho e grupos de outros animais.
Obtido pelo UOL, um vídeo mostra a crueldade que envolve esse tipo de caçada. Os cães praticamente matam os animais com os dentes, como piranhas que devoram suas presas.
O uso de cães para caçar javalis é controverso. Especialistas consultados pela coluna observaram que a edição de uma IN (Instrução Normativa) pelo Ibama em 2019, de número 12, abriu espaço, na prática, para verdadeiras "rinhas" sangrentas entre cães e javalis, tais como as mostradas nas imagens de vídeo, ao incluir a expressão "cães de agarre" como prática autorizada.
Ao mesmo tempo, a utilização desses cachorros para torturar e dilacerar os animais caçados não é expressamente autorizada na instrução, pois diz que é "vedada a prática de quaisquer maus-tratos aos animais, devendo o abate ser de forma rápida, sem que provoque o sofrimento desnecessário aos animais".
Porém, a autorização da IN sobre uso de "cães de agarre" entra em conflito direto com a resolução 1.236, de 26 de outubro de 2018, do Conselho Federal de Medicina Veterinária. A resolução considera maus-tratos aos animais, no item XXVII, "estimular, manter, criar, incentivar, utilizar animais da mesma espécie ou de espécies diferentes em lutas".
Crimes contra meio ambiente já foram inafiançáveis; lei foi suavizada na era FHC
Os vídeos também são usados para fazer propaganda de armas. "Esse é um rifle americano, com mira a laser, que estou usando pela primeira vez. Mas ainda prefiro meu cartucheira 22, que espalha chumbo para todo lado", diz "Pedrinho Caçador Sniper".
Cenas como as descritas acima e a postura de apoio do governo Bolsonaro em relação à permissão de garimpos em áreas indígenas e áreas ambientais protegidas dão a dimensão do quanto o país regrediu no combate a prática de crimes ambientais.
Ao ver comentários e atitudes infelizes do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e da ministra da Agricultura Pecuária e Abastecimento, Tereza Cristina, é impossível se esquecer que no país já houve governantes de direita mas que tinham um pensamento diferente sobre a matéria ambiental.
Políticos e pecuaristas como o pantaneiro de Corumbá (MS) José Fragelli (1915-2010).
Formado em direito no Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP), Fragelli, que foi governador "biônico" — isto é, eleito indiretamente pela Assembleia Legislativa com apoio da ditadura militar — de Mato Grosso de 1971 a 1975, e presidente do Senado durante o governo do presidente José Sarney, não sossegou até conseguir aprovar, em fevereiro de 1998, a Lei 7.653, que leva o seu nome.
A Lei Fragelli tornou inafiançável o assassinato de animais silvestres. A lei enquadrava também os agropecuaristas que provocassem a morte de peixes e animais ao jogar agrotóxicos e outros produtos químicos em lagoas e rios.
Esses crimes deixaram de ser inafiançáveis com a aprovação da Lei de Crimes Ambientais, sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) em 1998, que substituiu a antiga Lei Fragelli. Apesar de mais tímida, a nova lei também prevê prisão contra os matadores da fauna brasileira.
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