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André Santana

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Carta de um pai preto abandonado pelo próprio pai ao ator Luis Navarro

O ator Luis Navarro foi criticado após anunciar o fim do casamento com a influenciadora Ivi Pizzott - Reprodução/Instagram
O ator Luis Navarro foi criticado após anunciar o fim do casamento com a influenciadora Ivi Pizzott Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista em UOL Notícias

28/01/2023 04h00

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Olá, Luis, como você está? Espero que esteja conseguindo ficar bem, apesar da enxurrada de críticas que você recebeu depois de divulgar as tolas justificativas para a separação.

Cara, uma companheira em período de puerpério, duas crianças em fases diferentes de formação, dependentes de cuidados e atenção e você mais preocupado em ler livro?

Apesar de não sermos amigos, me senti autorizado a te escrever essa carta aberta, provocado por você mesmo, que expôs sua vida, seu relacionamento e sua busca por "reencontrar a essência".

Me senti tocado, pois muitas coisas nos aproximam. Como você e muitos brasileiros, fui abandonado pelo meu pai.

No meu caso, o abandono aconteceu quando eu ainda estava na barriga da minha mãe. Dona Luci teve que enfrentar, quase que sozinha, toda gravidez, o nascimento, o puerpério e o crescimento de três crianças.

Apesar do registro em certidão, meu pai nunca fez questão de manter qualquer relação de paternidade comigo. Eu sabia onde ele vivia, nos encontrávamos na casa da mãe dele; por vezes participávamos do mesmo ambiente e conversas familiares, mas nunca tivemos uma relação de pai e filho.

Nenhuma figura masculina ocupou esse lugar em minha vida. Nunca entendi porque os elogios que eu recebia —até de pessoas bem próximas a meu pai— não despertaram nele a vontade de estar perto.

Cresci e descobri que a minha vida e das minhas duas irmãs não importavam tanto para ele quanto o prazer em desfrutar do privilégio de ser homem e não precisar se responsabilizar por outras vidas. Talvez ele estive buscando "se reconectar para voltar mais forte". Nunca voltou.

As adversidades, aprofundadas pelo abandono do meu pai, exigiram de nós estarmos mais fortes, unidos. E continuamos firmes nesta missão. Mas poderia ter sido muito mais fácil, sem o abandono.

O desafio de ser pai sem ter tido um pai

Somente o nascimento do meu filho, há quase dez anos, em meio a um caldeirão de emoções me colocou novamente diante do abandono paterno, me trazendo o desespero de "ser pai sem ter tido um pai". Mais uma vez, a vida me fez extrair da ausência e da escassez o fundamental que eu precisava para fazer brotar em mim um pai.

Segui o ensinamento de minha mãe, das mulheres que caminharam com ela e das minhas irmãs e ofereci ao meu filho o que eu tinha de melhor: muito amor, carinho, cuidado e presença.

Descobri que o tempo na infância tem outra lógica, o relógio passa por outra rotação, os novos gestos são lentos e repentinos; as boas brincadeiras são curtas, mas repetidas, repetidas e repetidas; o pegar no sono pode chegar rápido em meio a uma agitação ou demorar horas para acontecer, mesmo no silêncio e na calma do ninar.

A única forma de acompanhar e tentar compreender esses ritmos é estando presente. É dedicando o que os especialistas chamam de 'tempo de qualidade', que não é calculado apenas pelo ponteiro dos relógios, mas pela dedicação integral à criança naquele momento.

Esse tempo de qualidade pode ocorrer em "horinhas de descuidos", entre uma troca de fralda e outra, no banho de sol, nos hábitos de higiene, nas descobertas da alimentação e até mesmo quando tarefas domésticas ou profissionais são realizadas na presença e atenção da criança.

Não estou falando que é fácil. O mundo nos cobra produtividade, excelência e tempo. Quando se tem filho, somos os primeiros a nos fazermos essas cobranças.

Desde que meu filho nasceu, nunca mais me permiti ter menos que dois empregos.

Nunca suficientes para atender às expectativas de tudo que um pai gostaria de oferecer ao filho.

Você precisa de tempo para ganhar mais dinheiro para atender às necessidades materiais do filho. Mas também precisa de tempo para oferecer o que ele precisa de afeto, cuidado e atenção. Como fechar essa conta?

Na minha humilde experiência, prefiro apostar em estar perto do meu filho, compartilhando com ele os "tempos de qualidade", mas também tentando superar com ele os tempos adversos.

É assim que fazem as mães. Elas educam suas crianças com o tempo possível, sem conseguirem ficar sozinhas ou se olharem no espelho.

Tenho tentado exercer bem uma paternidade presente e acredito que, com falhas e ausências, venho conseguindo cumprir essa função. No meu caso, a tarefa de ser pai é bem facilitada porque meu filho tem uma mãe incrível.

Eu falei que tínhamos coisas em comum, inclusive a sorte de encontrar uma mulher preta que, mesmo com nossas falhas, caminharam conosco até onde puderam, mas no tempo suficiente para nos fazer melhores.

Paternidade preta positiva não aparece na mídia

Para nós, homens pretos, ainda é mais difícil a busca por referências positivas de paternidade. Não está na telenovela, não está no livro didático, não está na propaganda de margarina ou de brinquedos, não está no noticiário.

Ao contrário, a mídia reforça os estereótipos de violência e de abandono. São raras as histórias de famílias negras felizes contadas nos meios de comunicação.

Por isso importa tanto o pai preto Luis Navarro.

Nossa única esperança e referência está nessas mulheres, mães pretas que dão lições de resiliência, de dedicação, de generosidade, de entrega e de cuidado.

Faço questão de repetir essa palavra, cuidado, que talvez seja a que mais define a função de um pai e de uma mãe. Cuidado que nós homens, geralmente, não temos com nossas vidas e com a vida de quem nos cerca, ainda que sejam vidas gerados por nós mesmos.

Cuidado que você não teve com a Ivi, com as suas filhas e com milhares de pessoas afetadas pela sua presença midiática.

Você nasceu com o talento de emocionar plateias, o que torna sua vida objeto de atenção e até de referência para muitas pessoas. É preciso que você tenha consciência da responsabilidade deste lugar que ocupa.

Como artista negro em um país racista, é preciso compreender o compromisso ao conquistar espaços que foram motivos de muita luta dos que te antecederam. Muitos pretos e pretas dedicaram suas vidas e liberdades para possibilitar que eu estivesse aqui te escrevendo e você estivesse brilhando como ator. Que pudéssemos expressar sentimentos e desfrutar da nossa humanidade negada pelo racismo e pelo colonialismo.

Em respeito a essas histórias, e por estarmos ligados a elas, nossa busca por "essência", nunca será pelo individualismo. A nossa re-conexão deve ser justamente com esse coletivo que tornou possível a nossa existência. Nosso ''espírito sucumbe", "enfraquece", quando abandonamos missões que justificam a nossa caminhada, que fazem sentido existir.

A mais incrível e desafiadora missão de ser pai

Hoje tenho a certeza que a minha maior missão neste mundo, o que dá sentido à minha vida, é exercer a paternidade, é ser pai de Benin Ayo.

Ser pai presente de meu filho, em meio à trabalheira que dá, às perdas de sono, às lágrimas com as doenças, ao cansaço e às incertezas, me faz reencontrar o menino abandonado pelo pai e abraçado e amado por tantas mulheres fodas.

Me coloca diante do espelho com o menino que cresceu, que aprendeu tanta coisa e hoje pode compartilhar com um ser humano em formação. Me ensina que ainda há tanto para eu aprender e que, estar perto do meu filho, abre a percepção do que me falta e do que eu tenho de sobra e posso transbordar.

Nada nem ninguém pode me afastar dessa tarefa. Nem o capitalismo sanguinário, nem o racismo destrutivo, nem o machismo autossabotador, nada tem o poder de me fazer abandonar meu filho.
Acredito que essa também é sua vontade, conforme ouvi em seu vídeo de desculpas. Senti sinceridade e torço para que consiga levar adiante esse compromisso que tornou público.

De qualquer forma, é preciso dizer que o seu grande vacilo (errou feio mesmo) provocou um debate interessante e nos permitiu aprender mais com os relatos e reivindicações das mulheres, especialmente das pretas como é a Ivi, as mais abandonadas.

Espero que você tenha dedicado tempo para ler ensinamentos incríveis. A repercussão do seu texto me obrigou a olhar para minha própria história e a pensar um pouco mais demorado sobre meu papel de pai.

Espero que também sirva para que muitos pais repensem seus comportamentos e corrijam suas ausências. Infelizmente, meu pai não teve tempo para isso. Ele morreu, praticamente sozinho, no corredor de um hospital público, sem nunca ter abraçado seu filho e sem conhecer o pai que esse filho se tornou, dando continuidade à sua existência neste mundo.

Um beijo para você e sua família, que vocês continuem construindo juntos "os melhores anos das suas vidas".

Forte abraço!

Salvador, Bahia, 26 de janeiro de 2023