André Santana

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Opinião

Lutas de independência na África incitaram Revolução dos Cravos em Portugal

Portugal celebra hoje os 50 anos da Revolução dos Cravos, movimento que pôs fim a mais de quatro décadas de ditadura e instaurou a democracia no país.

Em 25 de abril de 1974, um grupo de jovens capitães do Movimento das Forças Armadas (MFA) instaurou um golpe de Estado que derrubou o regime autoritário, nacionalista, de inspiração fascista e altamente repressivo. O salarzarismo, como ficou conhecido o Estado Novo em Portugal pela centralidade da figura de Antônio de Oliveira Salazar, foi um dos maiores entraves para a eliminação do colonialismo português no século 20.

Um dos grandes méritos do resgate histórico desta data é destacar a importância das lutas pela independência das colônias portuguesas africanas para impulsionar o movimento revolucionário em Portugal.

Durante muito tempo se narrou que a descolonização portuguesa no continente africano seria fruto da Revolução dos Cravos e se apagou os feitos contrários, do protagonismo da guerra colonial na situação política da metrópole europeia.

Entre as inúmeras ações organizadas pela Comissão Comemorativa dos 50 anos da revolução democrática está um portal rico de textos e informações que contam todo o contexto histórico que culminou com o 25 de abril e destaca as movimentações de insurgência em Angola, Moçambique, Guiné Bissau e Cabo Verde que abalaram o poderio militar instaurado pelo Estado Novo português.

Portugal celebra os marcos para a democracia no país, revisitando o seu passado, restabelecendo os fatos históricos e as narrativas sobre as relações com o continente africano e demais ex-colônias.

Como parte desta revisão histórica, está o reconhecimento público da culpa pelos crimes coloniais por parte do presidente português Marcelo Rebelo de Sousa, que nesta terça-feira (23) admitiu a responsabilidade do país nos crimes da escravidão e do período colonial, sugerindo a necessidade de reparação aos países afetados, incluindo o Brasil.

É importante que a nação que tenta combater a onda de xenofobia e violências contra imigrantes, impulsionada pelo crescimento da extrema direita, conheça como as aspirações por liberdade e independência vindas das ex-colônias ajudaram a consolidar os ideais de democracia que trouxeram desenvolvimento econômico e social ao país.

Capitães de Abril tiveram contato direto com os nacionalistas africanos

Os próprios oficiais do MFA, chamados Capitães de Abril, integram as unidades militares na África, experimentando táticas operacionais e logísticas utilizadas para o planejamento e ação exitosa em 1974.

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Como descreve o escritor e político Maurício Paiva, na obra "Portugal: a revolução e a descolonização" (Editora Mauad X, 2017), os Capitães de Abril tiveram contato próximo com as duras realidades da vida nas colônias e das lutas de libertação e com o ambiente de negociações com os revoltosos.

"Quando os dirigentes do MFA tiveram, pela primeira vez, a oportunidade de um debate direto com os lideres nacionalistas das colônias — parecem ter exercido alguma influência nas posições políticas e ideológicas que um bom número de militares do MFA viria a assumir", ressalta Paiva, que vivenciou de perto o período pós-revolução em Portugal.

Revolução Democrática em Portugal derrubou ditatura mais longa da Europa e trouxe desenvolvimento social e econômico ao país
Revolução Democrática em Portugal derrubou ditatura mais longa da Europa e trouxe desenvolvimento social e econômico ao país Imagem: Reprodução

No artigo "Os movimentos africanos pela independência e o fim do salazarismo", publicado na revista Afro-Ásia, edição 56, de 2017, o historiador Juvenal de Carvalho Conceição, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, detalha como os movimentos de libertação das ex-colônias portuguesas estabeleceram uma estratégia coordenada com a correlação de forças do momento e estimularam a queda do salazarismo.

De acordo com o historiador, as lutas pela independência transitaram entre a agitação política, o recrutamento e formação de quadros, a articulação com outros movimentos e busca de apoio de países africanos já independentes até chegaram à luta armada, adotando a estratégia de guerrilha combinada com a insurgência popular em várias frentes de combate simultâneos.

"Em Angola ainda havia uma relativa estabilidade. Na Guiné-Bissau e em Cabo Verde já não havia mais o que fazer. A situação era de colapso militar e o território estava sob controle dos africanos. Em Moçambique, os colonialistas estavam perdendo terreno rapidamente e a situação só não estava no mesmo nível da Guiné por conta da extensão territorial", escreveu Juvenal.

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Derrubar o salazarismo era condição para a descolonização

Por outro lado, os esforços de Portugal na guerra colonial para conter as lutas africanas desgastaram o país, tanto em termos econômicos como de apoio popular, com o desinteresse da juventude com a carreira miliar.

Juvenal de Carvalho aponta que a evolução dos gastos militares chegou a comprometer 40% a 60% do orçamento nacional para manter os cerca de 200 mil soldados na guerra colonial

"O movimento anticolonialista criado em 1957, que deu lugar à Frente Revolucionária Africana para a Independência das colônias portuguesas e a realização de conferência das Organizações Nacionais das Colônias Portuguesas, são demonstrações do nível de articulação de ação consciente e coordenada desses movimentos, que apostaram numa guerra prolongada em várias frentes de batalha como forma de desgastar, enfraquecer, minar as forças armadas e o Estado português já economicamente desnutrido", escreveu Juvenal.

Manter a guerra colonial tornou-se insustentável para Portugal, porém o regime ditatorial não iria negociar a independência. Portanto, derrubar o salazarismo era condição para a descolonização.

Em 24 de setembro de 1973, ou seja, sete meses antes da Revolução dos Cravos, em uma Guiné Bissau acirrada pelo assassinato do líder popular Amílcar Cabral, a Assembleia Nacional Popular proclamou unilateralmente a independência do país, adotando uma constituição republicana, reconhecida pela comunidade internacional e somente aceita por Portugal após a destituição do regime ditatorial.

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A partir da Revolução dos Cravos, o governo de transição criado para estabelecer a democracia em Portugal passou a negociar as complexas condições para a descolonização, culminando com o reconhecimento da independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde, em 1974, e Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe em 1975, após intensas lutas internas e até guerras civis sangrentas, com graves consequências sociais e econômicas para essas nações.

Como desejou a intelectual portuguesa Cristina Roldão, em entrevista à coluna no início do mês, que essas comemorações pelos 50 anos de democracia em Portugal possam evidenciar o que há a fazer para concretizar o 25 de abril para todos.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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