Filme resgata movimento revolucionário esquecido pelos livros didáticos
Finalmente chegou aos cinemas do Brasil o filme '1798: Revolta dos Búzios', do cineasta Antônio Olavo, que resgata a história da Revolta dos Búzios, um movimento revolucionário, de caráter popular, ocorrido no Brasil ainda colônia e que pregava o fim da escravidão e a proclamação de uma república democrática, com igualdade entre brancos, pardos e pretos.
Trata-se de um acontecimento que deveria ser de conhecimento de todos os brasileiros, servindo de orgulho e de inspiração.
Quem for ao cinema contemplar essa obra possivelmente sairá com a sensação de que já deveria ter ouvido antes sobre a Revolta dos Búzios e sobre a coragem dos mártires João de Deus do Nascimento, Manuel Faustino dos Santos, Lucas Dantas e Luís Gonzaga das Virgens que ousaram sonhar com um país livre e igual.
A narrativa do filme, centrada no processo de julgamento dos insurgentes pela coroa portuguesa, expõe as motivações, os ideais e os modos de mobilização daquela que foi uma das maiores demonstrações da persistente luta dos brasileiros por condições dignas de vida.
O roteiro do filme, do próprio Antônio Olavo, foi extraído dos 'Autos da Devassa', com mais de duas mil páginas que detalham minuciosamente as estratégias dos líderes do movimento, em sua maioria negros e trabalhadores, bem como a participação das mulheres e a adesão de figuras das forças militares da época.
Pasquins espalhados pela cidade pediam Liberdade e Igualdade
Para contar com dinamismo essa história esquecida pelos livros didáticos, imagens do cotidiano negro de Salvador do século 18 se fundem com as práticas culturais e laborais preservadas pelas comunidades negras até os dias atuais.
Um elenco de talentos negros dá voz aos revoltosos de Búzios, incluindo artistas forjados pelo Bando de Teatro Olodum, que conquistaram o Brasil com seus personagens na sequência Ó Paí, ó e hoje brilham em outras produções audiovisuais, como Cássia Valle (Partiu América), Luciana Souza (Bacurau) e Valdineia Soriano, a Dona Manuela da novela No Rancho Fundo.
Um dos destaques do filme são os Boletins Sediciosos, folhetos espalhados na cidade de Salvador, em agosto de 1798, que continham as aspirações do movimento, reivindicações humanistas, sonhos por justiça e felicidade para o povo, ideais que ainda hoje pautam movimentos sociais na luta por direitos.
Animai-vos povo bahiense, que está por chegar o tempo feliz da nossa liberdade: o tempo em que seremos todos irmãos, tempo em que seremos todos iguais."
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Quero receberFim da escravidão era principal bandeira
A insurgência contra o poder colonial português gerou medo e tensão na metrópole europeia, que já vinha abalada pela Revolução Francesa, que derrubou a monarquia e espalhou ideias de Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
Os ecos dessas mensagens iluministas revolucionárias, chamadas 'francesias', encontrou na Bahia o interesse de escravizados inconformados com o regime de opressão, além da classe trabalhadora formada por militares de baixa patente, ourives, artesãos, pedreiros e alfaiates. Daí um dos nomes do movimento ser Revolta dos Alfaiates ou Conjuração Baiana, denominações que não destacavam a principal bandeira dos revoltosos: o fim da escravidão.
Como já escrevemos aqui, a pauta racial era crucial e marcou este projeto de revolução democrática.
'Medo branco' à 'onda negra' motivou ofensiva contra a Revolta dos Búzios
A ousadia em propor o fim do sustentáculo da economia colonial e dos processos de expansão e desenvolvimento dos países europeus fez Portugal temer uma nova Revolução do Haiti, movimento que em 1791 provocou a primeira independência de uma colônia na América, fruto da coragem de africanos escravizados e mestiços que criaram uma Constituição própria, aboliram a escravidão e instituíram um Estado moderno independente em 1804.
O "medo branco" diante de uma possível "onda negra" libertária, motivou Portugal a montar um longo tribunal de investigação e julgamento, que durou cerca de 15 meses e realizou uma verdadeira devassa, com inquéritos, torturas em depoimentos e delações até a punição dos insurgentes.
A desigualdade racial é explícita nas sentenças finais, com penas mais brandas para os brancos e a pena de morte, por enforcamento e esquartejamento, para os negros, incluindo a exposição dos seus corpos em praça pública para desumanizá-los e desestimular outros movimentos rebeldes.
Pouca gente sabe, mas os mártires da Revolta dos Búzios, citados no início deste texto, foram finalmente reconhecidos pelo governo brasileiro, somente em 2011, quando tiveram seus nomes inscritos no livro nacional de heróis da pátria.
A bravura daqueles que se opuseram à violência colonial e os sonhos almejados em 1798 não foram esquecidos graças à insistência de pessoas como o cineasta Antônio Olavo, que desde 2018 tenta exibir o filme nos cinemas brasileiros. E também pela resistência de organizações do movimento negro, blocos afro e artistas da performance negra, que cantam e contam em versos, canções, livros, peças teatrais, desfiles carnavalescos, produções audiovisuais e publicações didáticas as aspirações revolucionárias deste movimento que tanto orgulho inspira aos brasileiros.
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