André Santana

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É preciso entender a África como constitutiva do Brasil, diz Tiganá Santana

O músico e filósofo Tiganá Santana é o curador da exposição 'Línguas Africanas que fazem o Brasil', aberta ao público no dia 24 de maio e em cartaz até janeiro de 2025, no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo.

A mostra reúne instalações, esculturas, registros históricos, produções audiovisuais e demais obras artísticas que reforçam o que o artista já apresenta em sua trajetória musical: a íntima relação entre as línguas do continente africano, em especial da região subsaariana, como o iorubá, o eve-fom (ou ewe-fon) e as do grupo bantu, com a constituição do português falado no Brasil.

Na contramão das imagens estereotipadas propagadas sobre o continente africano, narradas pelo discurso colonial racista apenas como um território de guerras, doenças e extrema miséria, há um movimento de organizações e artistas para mostrar as potencialidades da África e as contribuições fundamentais à constituição da sociedade brasileira.

Tiganá acaba de lançar seu sétimo álbum, Caçada Noturna, consolidando um trabalho de compositor e intérprete de canções que mergulham na experiência de sensibilidade e delicadeza, por vezes conduzindo à atmosfera de espiritualidade da ancestralidade afro-brasileira.

Para isso, suas criações têm a força poética alicerçada em diferentes idiomas dos povos do mundo, sem se esgotar nos hegemônicos (inglês, francês, espanhol e português), mas também nas múltiplas sonoridades de línguas africanas como o Kikongo e o Kimbundu.

Primeiro artista brasileiro a compor em línguas africanas

Tiganá é pioneiro em compor nessas línguas matriciais que reverenciam as origens dos povos negros que formaram o Brasil, e que ainda estão preservadas em manifestações culturais e religiosas, e também foram incorporadas aos falares cotidianos brasileiros.

"Essas línguas são absolutamente constitutivas do Brasil e se fazem presentes no léxico de caráter substitutivo. Por isso aqui ninguém fala dormitar, como os portugueses, e sim, cochilar, e nem chamamos o filho mais novo de benjamim, mas de caçula", exemplifica Tiganá, em entrevista à coluna.

Na exposição, o público se surpreenderá com a quantidade de palavras de origem bantu que fazem parte dos diálogos cotidianos dos brasileiros, como minhoca, bunda, xingar, marimbondo, dendê, canjica, além das já citadas cochilar e caçula.

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Exposição 'Línguas Africanas que fazem o Brasil' em cartaz até janeiro de 2025, no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo.
Exposição 'Línguas Africanas que fazem o Brasil' em cartaz até janeiro de 2025, no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. Imagem: Guilherme Sai

O domínio de vários idiomas estava nos caminhos de Tiganá, mesmo ele desviando do projeto pensado por sua mãe, que queria ver o filho tornar-se um diplomata, escapando da tradição artística dos membros da família. Se relacionando com a arte desde cedo, escrevendo poesia e tocando instrumentos, ele escolheu estudar Filosofia na Universidade Federal da Bahia e mesmo assim foi fisgado pela música e pelas múltiplas potencialidades da palavra.

O interesse por essas línguas leva o artista a estabelecer pontes com músicos de diferentes nações. Caçada Noturna, por exemplo, foi gravado em Serpa, cidade de Portugal. Já o álbum "Tempo e Magma" (2015) foi gravado no Senegal, com a presença de músicos que cantam nos idiomas locais wolof e madê. Seu lançamento no mercado fonográfico, Maçalê, de 2010, é considero o primeiro registro de um artista brasileiro compondo em línguas africanas.

"Há uma dimensão política que é o fato incontornável de que, como brasileiro, não há como não se interessar por essas línguas, que não são estrangeiras e sim constitutivas do Brasil. Outra é a dimensão estética, que me faz criar a partir de um conjunto de elementos sonoros, rítmicos, que me ajudam a inventar, a fabular esteticamente a partir do que essas línguas podem me oferecer", explica Tiganá Santana.

União entre agenda antirracista e afirmação estética

O músico, de 41 anos, nasceu em Salvador e é filho da atriz e educadora, Arany Santana, que contribuiu para a fundação de importantes entidades da resistência ao racismo como o Movimento Negro Unificado, de 1978, e o bloco afro Ilê Aiyê, que completa 50 anos em 2024.

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"O Ilê Aiyê conseguiu algo tão importante que foi unir, de modo raro, a agenda antirracista à uma afirmação estética, que reconfigurou as relações raciais na Bahia e se espraiou pelo Brasil, lastreando transformações. O movimento negro, como vemos hoje, começa com o Ilê Aiyê", afirma Tiganá.

Junto ao Ilê Aiyê, entidades voltadas ao carnaval, como os blocos afro e as escolas de samba, trataram de contar a história da África a partir das civilizações antigas que legaram descobertas e conhecimentos à humanidade e a narrar as lutas pela independência dos países africanos em músicas e fantasias que encorajaram os negros brasileiros a reivindicações por direitos.

"A requalificação da experiência de civilizações humanas que foram destituídas do lugar de existência, possível apenas na precariedade e na miserabilidade e ao encontro de uma cosmovisão e a bases epistemológicas que nos permite criar, conceber e cruzar outras instâncias de saber", enfatiza Tiganá Santana.

O Candomblé e a filosofia

Outro importante espaço de preservação e vivência das heranças africanas, sobretudo as línguas, é o candomblé, religião com a qual Tiganá estabelece relação familiar.

"Eu sou do candomblé desde criança. O candomblé também me formou e integra as minhas leituras de mundo. Eu não consigo distinguir até onde vai na minha formação como pessoal, como artista. É como a filosofia", destaca o artista que é tata xicarangoma, responsável pelos cantos e toques do Terreiro Tumbenci, da tradição angola, na Bahia.

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Tiganá Santana, músico e filósofo
Tiganá Santana, músico e filósofo Imagem: Rovena Rosa / Agência Brasil

A cosmologia do candomblé está em suas canções, que criam um ambiente sensível, tais como preces, fornecem possibilidades de conexão com o sagrado. No caso, com uma ancestralidade, que ele estabelece como central e ativada no presente.

"É importante afirmar que existe esta matriz cosmológica e é importante fazer isso com a qualidade de expressão e de conteúdo, compreendendo a importância que essa afirmação tem em um país que se 'neo pentecostaliza' cada vez mais e adota uma postura violenta contra as religiões de matriz africana e a tudo que não seja a conduta mono de pensar".

Discursos fundamentalistas explicitados

Tiganá revela sua indignação com o discurso fundamentalista que, nos últimos anos, chegou à política e ao poder executivo.

"Sempre houve, mas agora há uma explicitação. Muita gente passou a tornar explicita que a sua vontade não é tornar esse país um lugar para todos, aí dizem o que querem, tiram discursos do bueiro para ofender", reclama.

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Diante dessas violências explicitadas, o artista fica desconfiado se há mesmo um processo de transformação efetiva, buscado pela ação do movimento negro e pelo trabalho de artistas comprometidos com essas causas.

"Não podemos pensar que é um processo linear e que estamos conseguindo avançar. Ainda faltam muitas transformações políticas e de imaginários estéticos, políticos, éticos. São transformações que não podem ser pontuais, não podemos nos tornar tema ou tendência e também não queremos retroagir. Então é tudo muito complexo, no Brasil não é fácil", pontua Tiganá.

Não queremos ser um assunto pontual que limpa a consciência de pessoas progressistas que têm a questão racial como o calcanhar de Aquiles
Tiganá Santana, músico e filósofo

Ele sabe muito bem o que falta para que essas transformações sejam efetivas e não apenas uma onda do momento.

"Ainda precisamos ter os corpos negros ocupando as instâncias de decisões políticas e que podem, de fato, transformar. É para isso que precisamos continuar lutando. Porque quando pensamos em democracia na prática, a questão racial deve ocupar a prioridade de um lugar fundante e inescapável. A África é um lugar de estrutura", anuncia.

A esperança que vem da sala de aula

Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), Tiganá Santana é professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da Universidade Federal da Bahia e também da Pós-Graduação em Estudos Brasileiros da USP.

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A atuação na docência tem trazido esperança:

A gente tem visto na universidade, a presença de mais corpos dissidentes, de corpos da periferia, que têm trazido seus conhecimentos e suas experiências. Desejamos que, no mais breve possível, que eles também estejam ocupando os espaços de decisão.

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