André Santana

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Opinião

Há 135 anos Bembé do Mercado celebra religião que Anitta exalta em 'Aceita'

A cantora Anitta utilizou as redes sociais para publicar imagens do novo clipe da música Aceita, na qual assume e exalta a religião do Candomblé. Com isso, a cantora anunciou ter perdido mais de 200 mil seguidores em seu perfil.

A data escolhida por Anitta, o dia 13 de maio, foi a mesma que o babalorixá João de Obá e seus seguidores, em 1889, decidiram ir para a praça principal da cidade de Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo da Bahia, para celebrar os orixás e agradecer pelo fim da escravidão, abolida oficialmente um ano antes.

Os negros nascidos livres e os recém libertos ocuparam as ruas para enaltecer a sua ancestralidade africana e saudar o Sagrado que os possibilitou atravessar os anos de sequestro, escravização e violência colonial. O ato, além de uma declaração pública de fé, expressava a liberdade tão almejada.

Pela rejeição à postagem da Anitta, vê-se o quanto ainda temos que enfrentar de preconceito e racismo religioso no Brasil, 135 anos após a corajosa atitude de comemorar a abolição da escravidão com toques de atabaques e cantos aos Orixás. Por isso, em Santo Amaro, a atitude de João de Obá é celebrada e repetida todos os anos no Bembé do Mercado, considerado o maior Candomblé de rua do mundo.

O Bembé do Mercado é uma manifestação cultural e religiosa que reúne mais de 65 terreiros de Candomblé, no largo do mercado principal de Santo Amaro da Purificação, município a 80 km de Salvador.

É um raro momento em que uma cerimônia do Candomblé acontece na rua, onde também são apresentadas outras expressões da cultura afro-brasileira, como o samba de roda, a capoeira, o maculelê, o lindro amor, o nego fugido de Acupe, as caretas de Saubara, entre outras práticas deixadas pelos escravizados.

De 13 a 18 de maio, o Candomblé é o centro de uma rica programação que inclui shows, performances, aulas públicas e debates sobre patrimônio imaterial, culturas e saberes populares, educação antirracista, combate à intolerância religiosa entre outras ações.

No Bembé do Mercado, temos a religiosidade de matriz africana, ainda hoje perseguida e discriminada, promovendo a união de comunidades, poderes públicos, acadêmicos e ativistas sociais para refletir e exigir respeito às práticas culturais da população negra.

Em 2019, o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) reconheceu o Bembé do Mercado como Patrimônio Cultural do Brasil. A Unesco, órgão da ONU (Organização das Nações Unidas), acompanha a realização do Bembé em vista a oferecer o título de Patrimônio Cultural da Humanidade, o que garantirá a valorização e preservação como um bem de valor para todos os povos do mundo.

O Bembé do Mercado é uma das mais longevas ações afirmativas de combate ao racismo no século XXI. Em 2024, esse movimento pelo respeito e liberdade religiosa ganha ainda mais visibilidade pela provocação feita pela cantora Anitta, com as imagens da sua nova canção Aceita.

As forças das águas e das florestas

Anitta é filha de Logun Edé, divindade que une as forças das águas e das florestas, por ser fruto do encontro entre Oxum, protetora dos rios, e o caçador Oxóssi, rei das matas.

No clipe, a artista se mostra com os trajes e símbolos religiosos em cenas comuns aos rituais do Candomblé, como os banhos de ervas sagradas e a preparação das comidas oferecidas às entidades e compartilhadas pela comunidade religiosa. Apesar da letra não expressar literalmente, o clipe exalta o poder da natureza, fonte das divindades e do sagrado celebrado nas religiões de matriz africana.

"Oh, é que eu vou morrer assim, nunca vou mudar. Não é tão difícil de aceitar", diz a letra da canção que mistura trechos em inglês e espanhol, para reclamar da forma como é (des)tratada, entre termos como 'exótica', 'estilosa', 'cachorra rebelde'.

I don't think you know cómo me llaman a mí (Eu acho que você não sabe como me chamam), diz outro refrão de Aceita.

Após perceber a fuga de seguidores incapazes de convier com a expressão da sua religiosidade, Anitta se posicionou criticando a atitude dos intolerantes e saudando Exú, o Orixá dos caminhos, o mensageiro entre os homens e os demais deuses.

"Laroyê Exú, tirando dos meus caminhos tudo que já não me serve mais. Nessa minha nova fase escolhi qualidade e não quantidade. Axé", escreveu a cantora no Instagram.

Exú deu livramento a Anitta, afastando gente de sentimentos ruins, que não conseguem abandonar o preconceito para respeitar a diferença. Gente que se disfarça de boa moral, mas que ainda acredita que é possível utilizar uma suposta fé para agredir e aprisionar outro ser humano, tal como no período colonial.

Estranho pensar que essas pessoas, conservadoras de araque, resistiram seguidoras da artista mesmo diante das polêmicas causadas pela exposição livre da sexualidade (a exemplo da ousada performance junto a Madonna no recente show de Copacabana) e não conseguiram aceitar imagens singelas que revelam a busca e o encontro com o sagrado que há natureza, em uma bela reconstrução artística da expressão da fé.

Apesar da perda de seguidores, as imagens do clipe ganharam milhares de aplausos e elogios de pessoas que vivem no cotidiano a beleza de ser da mesma religião de Anitta e experimentam a força que recebem dos ancestrais para enfrentar o racismo que permanece no Brasil desde os tempos de Pai Obá.

É muito importante a atitude de Anitta, artista de visibilidade internacional, para enaltecer a religião do Candomblé e, ao mesmo tempo, expor o racismo ainda sofrido pelos seus seguidores que, para além de deslikes, sofrem com xingamentos, agressões físicas e invasões de terreiros.

Não faz um mês que o preconceito contra a religiosidade de matriz africana ganhou a cena em um show internacional de outra artista brasileira, o que provocou um debate de como a arte pode contribuir contra a intolerância religiosa. O posicionamento de Anitta ensina o caminho. .

Aceita parece ser a palavra ideal para definir o brado do povo de Santo Amaro há 135 anos, que ainda ecoa na arte de Anitta, nos falando de resistência e fé nos ancestrais.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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