André Santana

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Opinião

Dia da Mulher Negra: Por que ler escritoras da América Latina e do Caribe?

A celebração do dia 25 de julho como o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, além de evidenciar demandas das mulheres negras não atendidas na pauta do 8 de março (Dia Internacional da Mulher), serve também para aproximar o Brasil das lutas promovidas nos demais países da América Latina e do Caribe.

A cada ano, aumentam as atividades em alusão à data, em construções de agendas que unem as mulheres negras do continente. Nesta data, é possível perceber as semelhanças na construção da democracia e na busca por direitos e igualdade entre países com um histórico de colonização europeia e permanência do racismo e do machismo como estruturantes.

Uma das pontes para o diálogo entre as lutas sociais no Brasil, na América Latina e no Caribe tem acontecido em torno da literatura de autoria feminina. Neste sentido, a tradução de obras de escritoras negras de língua espanhola e francesa rompe um isolamento histórico do Brasil, único país a falar português na região.

Para entender porque é tão importante celebrar a chegada dessas obras ao mercado editorial brasileiro, conversamos com duas pesquisadoras dedicadas às literaturas do Caribe.

"Escritoras e intelectuais negras latino-americanas e caribenhas vivem em sociedades depositárias e herdeiras do colonialismo, racismo e patriarcado. No ato político de (re)imaginar a si mesmas, essas vozes tornam-se a oposição absoluta ao projeto colonial e aos papeis sociais que, nós, mulheres negras, devemos desempenhar", aponta Cristian Sales, doutora em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia e professora da Universidade do Estado da Bahia.

Para Cristian, com suas obras, essas escritoras reivindicam diferentes espaços e direitos, visando restituir a humanidade violada pelo discurso colonial.

"Em verso e prosa, elas trazem elementos da ancestralidade, da identidade negra feminina e outros aspectos da subjetividade negra, os quais se contrapõem aos estigmas e estereótipos da mãe-preta, da ama-de-leite, da mucama do corpo para o trabalho e da mulata do corpo-objeto", pontua.

Profa. Dra. Cristian Sales: critica literária e pesquisadora de literaturas de autoria negra feminina na América Latina e Caribe
Profa. Dra. Cristian Sales: critica literária e pesquisadora de literaturas de autoria negra feminina na América Latina e Caribe Imagem: Reprodução / Instagram

Outro ponto marcante destacado pela pesquisadora está relacionado à reescrita de narrativas de mulheres africanas e negras, retirando essas mulheres do lugar de vítimas da violência colonial.

"Evidenciando a resistência como uma característica herdada", completa Cristian.

Para a pesquisadora, obras como Awon Baba, da cubana Teresa Cárdenas, lançada no Brasil em 2022, pela editora Pallas, devolvem o protagonismo das existências negras e femininas.

"Em muitas narrativas, somos sucessoras de mulheres quilombolas e cimarronas que lutaram e resistiram bravamente. Não somos representadas como sujeitos passivos do colonialismo e patriarcado", ressalta Cristian.

Entre as escritoras caribenhas de língua espanhola que deveriam ser mais conhecidas por leitoras brasileiras, Cristian Salles cita Mayra Santos-Febres, de Porto Rico, Georgina Herrera, de Cuba, além de Teresa Cárdenas.


Caribe Francófono: novas obras traduzidas


Nos últimos anos, tem ocorrido um tímido, mas crescente interesse também sobre a literatura caribenha de língua francesa.

"Escritoras como as guadalupenses Maryse Condé e Simone Schwarz-Bart que tiveram suas obras traduzidas no fim da década de 80 e nos anos 90, após o quase completo esquecimento, presenciam a retomada da circulação de suas obras aqui no Brasil", aponta Margarete Nascimento dos Santos, doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense e professora da Universidade do Estado da Bahia.

Margarete também inclui na lista de escritoras traduzidas aqui no Brasil em 2022, as haitianas Edwidge Danticat, autora de "Clara da Luz do Mar" (Editora Todavia) e Yanick Lahens, do livro A Cor do Amanhecer (Paris de Histórias).

O livro, "Eu, Tituba, Feiticeira... Negra de Salem", de Maryse Condé, que havia sido publicado pela Rocco em 1997, ganhou uma nova edição em 2021. Em 2022, mais duas obras da escritora de Guadalupe ganharam versões no Brasil: "O Evangelho do novo mundo" (Rosa dos Tempos) e "O coração que chora e que ri: Contos verdadeiros da minha infância" (editora Bazar do Tempo).

Chega também às livrarias brasileiras, agora em 2023, o livro "Chuva e vento sobre Télumée Milagre" (editora Carambaia), de Simone Schwarz-Bart. Trata-se de uma nova edição da obra "A Ilha da Chuva e do Vento", de 1986, agora com prefácio do premiado Itamar Vieira Júnior.

A Profa. Dra. Margarete Nascimento dos Santos é pesquisadora da Literatura do Caribe Francófono
A Profa. Dra. Margarete Nascimento dos Santos é pesquisadora da Literatura do Caribe Francófono Imagem: Acervo pessoal
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Entre os elementos mais marcantes nas obras dessas escritoras, Margarete sinaliza a necessidade de fazer da literatura um espaço de registro da memória.

"Nas obras de escritoras como Maryse Condé e Simone Schwarz-Bart é recorrente a temática da colonização, da escravização dos povos africanos e dos impactos no território caribenho", pontua.

A pesquisadora destaca que os saberes ancestrais são guardados e perpetuados graças às tradições e à oralidade.

"Essas escritoras exploram personagens femininas que representam matriarcas fortes e determinadas, que guardam os segredos e a sabedoria do povo negro", completa Margarete.


Escritoras reafirmam importância do Haiti para a história negra mundial

Em 1º de janeiro de 1804, nasceu a primeira República Negra livre do mundo colonial: o Haiti. Apesar da sua proximidade geográfica e da forte relação histórica, o país permanece desconhecido dos brasileiros, sendo lembrado apenas como referências de fome, violência e pobreza.

"Historicamente, vivemos uma realidade bem próxima à do Haiti, lá e cá fomos submetidos à um regime de exploração que nos submeteu ao apagamento do nosso passado. Lá e cá resistimos bravamente, graças aos nossos mais velhos que mantiveram vivas as tradições e guardaram nossos saberes ancestrais", defende Margarete.

Para a pesquisadora, desbravar a literatura caribenha, em especial a produzida pelas escritoras, é uma forma de reestabelecermos a conexão entre os nossos mundos. "É uma forma de restituirmos ao país o lugar de honra que lhe é devido e consequentemente subverter o sistema político-econômico que nos é imposto", justifica.

Margarete explica que nos dias atuais, ler estas obras, nos aproxima de um Haiti desconhecido, pois estas escritoras trazem para a ficção as questões sociais presentes no país e enfrentados no cotidiano. "Mas sobretudo, elas nos apresentam uma população forte, resiliente e corajosa, pronta a sobrepor todas as barreiras", destaca.

A pesquisadora explica ainda que em suas obras as escritoras, sobretudo as contemporâneas, assumem a responsabilidade de representação da população pobre do país, falam dos governos ditatoriais e a forma como as guerras civis abalaram a organização social, o impacto da violência e o anseio pelo exílio.

"As escritoras contemporâneas retratam o dia a dia da mulher haitiana, uma negação da romantização das dores e do sofrimento das mulheres, vista como uma estratégia para minimizar as injustiças que a sociedade lhes impõe, em especial às mulheres negras que sofrem duplamente a negação de sua humanidade", reforçar Margarete Nascimento dos Santos.


Amefricanidade defendida por Lélia Gonzalez


As pesquisadoras acreditam que traduzir escritoras negras latino-americanas e caribenhas para o português pode contribuir para fazer circular no Brasil experiências históricas comuns entre mulheres marcadas pelo colonialismo, diáspora, racismo, machismo, lesbofobia e discriminação social.

"Esse pode ser o fio condutor de uma série de ações coletivas para inspirar e provocar outras formas de cimarronajes", acredita Cristian Sales, citando o termo em espanhol para a ideia de quilombo.

Cristian Sales lembra da filósofa e antropóloga brasileira Lélia Gonzalez (1935-1994) que cunhou o conceito de Amefricanidade, que pode se realizar a partir dessas escritas ao permitirem diálogos e interações entre mulheres de línguas, regiões e geografias culturais diversas.

"A partir de experiências e vivências de mulheres negras brasileiras com vozes-irmãs latino-americanas e caribenhas, podemos promover um movimento revolucionário de insurgência no Atlântico", finaliza Cristian.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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