André Santana

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Opinião

"Quando PM mata a gente não é crime", diz autor de 'Salvador Cidade-Túmulo'

O aumento dos homicídios na Bahia, sobretudo as mortes em operações policiais, tem sido denunciado há décadas por organizações sociais, especialmente do movimento negro baiano.

O fato da Polícia Militar da Bahia ocupar o primeiro lugar em letalidade no país, com 1.464 pessoas mortas em intervenções oficiais em 2022, o que representa 22,7% do total nacional, não chega a surpreender ativistas que acompanham o cotidiano de violência e mortes da segurança pública da Bahia.

"Não existe Política de Segurança Pública, existe política de segurança privada que protege certos grupos e age privando a liberdade e a vida em comunidades pretas", denuncia Hamilton Borges, escritor e um dos organizadores da Campanha Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta, criada em Salvador, em 2005.

Para Hamilton, não há novidades nos números recentes que mostram o crescimento da violência e da letalidade policial no estado da Bahia.

"Tudo que acontece no Rio de Janeiro e em São Paulo tem uma repercussão maior. Mas nós estamos denunciando essa violência na Bahia há décadas. Aqui a situação é muito pior. Nós criamos a campanha Reaja para denunciar ao mundo o genocídio da população preta em curso na Bahia", afirmou à coluna Hamilton Borges.

PT governa a Bahia há cinco gestões consecutivas

Levantamento do Anuário Brasileiro de Segurança Pública revela que, entre 2015 e 2022, as mortes por agentes das forças de segurança saltarem 313% na Bahia. Também cresceu o número de municípios baianos na lista das cidades mais violentas do país. Atualmente 11 cidades da Bahia estão entre os lugares com maior número de homicídios em 2022, incluindo Jequié, que ocupa o topo do ranking e a capital, Salvador, na 12º posição.

O atual grupo político que governa a Bahia teve tempo suficiente para compreender a dimensão do problema e propor inciativas para conter esse crescimento. O Partido dos Trabalhadores completou 16 anos no comando do governo da Bahia, e iniciou o quinto mandato consecutivo com o atual governador Jerônimo Rodrigues, sem nenhuma perspectiva de alteração dessa política.

Pelo contrário, nos discursos oficiais mantem-se a proteção dos agentes policiais de qualquer acusação e uma desqualificação da dimensão do problema. As mortes de inocentes são tratadas como casos isolados e há uma legitimação do assassinato de suspeitos, como se operasse na Bahia a adoção da pena de morte.

O governo da Bahia chegou a afirmar que "as pessoas mortas em confrontos com os agentes são homicidas, traficantes, estupradores, assaltantes, entre outros criminosos". Hamilton Borges também não se surpreendeu com esse posicionamento:

"Não é absurdo, é uma resposta cínica de um governo que admite ser homicida", disse à coluna Hamilton Borges.

Para o militante, antes das gestões petistas havia uma tentativa de esconder esses fatos. "Nos governos de ACM, que também era homicida, havia um mascaramento desta violência. Agora não, a esquerda escancara, pois se sente no lugar confortável de poder sobre os corpos negros", pontua.

Crimes contra pretos não são investigados

Se arrasta na burocracia dos gabinetes do governo da Bahia a iniciativa para colocação de câmeras acopladas aos uniformes para registro das atividades dos policiais em serviço. Mesmo com a comprovação da eficácia da medida na redução dos homicídios em outros estados, como São Paulo, o governo da Bahia parece temer o que essas câmeras podem registrar.

Hamilton Borges chama atenção que essa letalidade policial não ocorre no exercício do ofício em bairros nobres e, sim, em comunidades negras. Além disso, falta investigações dessas mortes.

"Cadê o instituto médico legal? cadê as necropsias? todo o gasto que o governo tem para obter equipamentos e tecnologias para esses exames, com DNA, não são utilizados em crimes contra pessoas pretas". Ao contrário disso, Hamilton denuncia que não há nem a preservação da cena do crime, as investigações são rápidas e a justificativa recai no auto de resistência.

"Quando a PM mata a gente não é crime", Hamilton Borges.

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É curioso, e ao mesmo tempo cruel, como o PT da Bahia, que tem suas bases muito próximas a movimentos sociais e comunitários, não consiga absorver essa demanda prioritária como a mais dramática e urgente no cotidiano das comunidades e territórios habitados por pessoas pobres, em sua maioria, pretas.

Campanha faz denuncia internacional contra o genocídio

Uma das organizações mais atuante na denúncia contra a política de extermínio na Bahia é a Campanha Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta. Ao logo dessas quase duas décadas, a Reaja realizou atos públicos, acionou órgãos nacionais e internacionais, fez pesquisas e levantamento de dados nos institutos de medicina legal e, em diálogo próximo com famílias de vítimas, produziu materiais que demonstram o fracasso das políticas governamentais em proporcionar segurança à população e o êxito em manter uma ação institucional contra a vida de pessoas pobres e pretas.

Em 2021, a Campanha Reaja lançou o filme-manifesto "Genocídio e Movimentos", dirigido por Andreia Beatriz, Hamilton Borges dos Santos e Luis Carlos de Alencar. O documentário denuncia as chacinas em favelas do Brasil como parte de uma política de genocídio da comunidade negra.

O filme expõe relatos dolorosos de mães e pais que tiveram seus filhos assassinados, ainda jovens, em operações policiais. Uma das principais ações da Reaja tem sido justamente o acolhimento dessas famílias vítimas da violência do estado, numa tentativa de apoiá-las na busca por justiça. A Reaja também está nos presídios, enfrentando a dura realidade de encarceramento em massa, desumanização e longa espera por julgamentos justos.

Aliada à luta política, Hamilton Borges dos Santos utiliza a literatura para ecoar suas indignações e alcançar a sensibilidade e a consciência de outras pessoas para a barbárie imposta por pelo Estado violento.

"Decidimos escrever primeiro para que ninguém conte nossas histórias por nós e depois para ficar o registro de uma realidade que precisa dialogar com o futuro", explica.

Hamilton Borges em cena do documentário Genocídio e Movimentos
Hamilton Borges em cena do documentário Genocídio e Movimentos Imagem: Lena Azevedo

Hamilton é autor de "Teoria Geral do Fracasso" (2017), "Salvador, cidade túmulo" (2018), o romance "O livro preto de Ariel" (2019), o recente Bantu Machine (2023), entre outras obras de carga poética e forte denúncia.

"Lançamos livros para afastar as armas, descobrimos e revelamos talentos nas comunidades, publicamos e inspiramos outros jovens", acredita Hamilton.

A Reaja também mantém uma editora, uma escola comunitária e uma livraria no Engenho Velho de Brotas, bairro de população negra de Salvador, com muitas manifestações culturais e excessiva repressão policial.

Em junho, por exemplo, durante os festejos do São João no bairro, Hamilton utilizou as redes sociais contra a ação truculenta da polícia que interrompeu uma festa organizada pelos próprios moradores. "Eles chegaram chutando as crianças, ofendendo idosos, pessoas que mantém aquela tradição há décadas. Não tinha paredão, não tinham drogas, eram vizinhos comemorando e a polícia chegou barbarizando", conta Hamilton.

Mais uma vez, o Governo da Bahia, por meio do seu braço armado, impede qualquer possibilidade de convivência digna no bairro negro, no qual a presença estatal é reduzida às operações policiais violentas e letais. "A Policia é inimiga da comunidade", sentencia Hamilton Borges.

Abaixo, um trecho da obra O Livro Preto de Ariel, quando Hamilton Borges narra de forma literária uma intervenção da Polícia Militar da Bahia em uma comunidade negra de Salvador, destacando os sentimentos e decisões de um policial iniciante, que tinha entrado na corporação com ideais de justiça, por uma polícia civilizada:

"Ribeiro suspirava dentro do seu capacete e de sua máscara de brucutu. Pensava porque ao invés de ódio os seus companheiros não colocavam o amor à pátria e ao povo ordeiro como insígnia. Ele olhava as casas sem reboco, as calçadas lotadas de lixo, as ruas cheias de buraco e poças d´água de esgoto a céu aberto. Das janelas mais altas, alguns moradores enfrentavam a rua e olhavam com o mesmo ódio a marcha lenta e pesada da polícia, entrando pelo caminho e deixando um rastro de destruição. Casas invadidas, móveis quebrados, pessoas rendidas com os braços dobrados até que elas inclinassem todo o corpo junto se contorcendo de dor. O companheiro atrás de Ribeiro soltou umas duas manobras de bomba de gás, ele colocou a máscara imediatamente e viu pessoas comuns saírem de suas casas abertas, tossindo, arfando, agonizando com aquela fumaça tóxica. Eram crianças, idosos, mulheres grávidas, pessoas com asma, pessoas com raiva gritando, xingando o Estado, perdendo o medo e tomando mais porrada.

Uma mulher vociferava palavras de ordem contra a ação arbitrária da polícia naquele momento. Ribeiro imaginava a indignação da mulher. Verificou excessos, uso desproporcional de força militar. Ela gesticulava e avançava contra um pelotão com vinte e cinco soldados fortemente armados. Uma voz de comando transpôs a fumaça e os gritos da mulher e ativou o cérebro de soldado de Ribeiro, toda sua programação militar foi acionada com o grito do tenente:

- Atira, atira, porra, nessa vagabunda.

O aspirante carregou a espingarda calibre doze, apontou para a mulher que gritava socorro pela vida de sua filha, uma menina de treze anos que convulsionava pelo efeito do gás lacrimogêneo.

A mãe buscava os primeiros socorros para a filha, mas a pequena tropa entendeu como uma atitude perigosa. Soldado Ribeiro nem pensou. Atirou. Atingiu o peito da mulher que se contorceu de dor, outro tiro atingiu o braço e os soldados a atropelaram com seus coturnos, escudos, armas. Também atropelaram a boa vontade conveniente de soldado Ribeiro, as boas intenções e os direitos humanos de gabinete que morriam ali, na frente da população que fiou para trás, sempre ignorada e esquecida e agora atrás dos coturnos daqueles policiais sedentos de sangue. Populares e vizinhos socorreram a mulher que sangrava e chorava. Sua filha, a criança que convulsionava, foi colocada num carrinho de mão, eles tentavam furar o cerco da polícia e foram buscar atendimento para as duas. Tarde demais. A menina estava dura, a alma escapou do corpo e a mãe teve a própria alma reduzida. Olhava o mundo sem as cores da vida, só o marrom do terror em sua frente, na retina de seus olhos fixos".


(O livro preto de Ariel, Hamilton Borges dos Santos, 2019, Editora Reaja, páginas 67 e 68)

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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