Na Bahia, o abolicionismo de Angela Davis conhece a prisão injusta de Oxalá
A filósofa e ativista afro-americana Angela Davis esteve em Salvador, no início desta semana e, mais uma vez, renovou a inspiração mútua estabelecida entre ela e o movimento de mulheres negras do Brasil.
Nos últimos anos, a presença da professora emérita da Universidade da Califórnia (EUA) no Brasil é sempre motivo de auditórios lotados para concorridas conferências que reforçam a ponte entre os movimentos contra o racismo e o sexismo nos Estados Unidos e no Brasil, em especial na Bahia.
Lançamento do livro "Abolicionismo. Feminismo. Já"
Contudo, mais do que trazer ensinamentos e notícias das lutas travadas pelos negros em seu país natal, as falas de Angela Davis no Brasil têm priorizado valorizar o papel fundamental de intelectuais e ativistas negras brasileiras, nos fazendo olhar com mais atenção para nossas próprias estratégias de enfrentamento ao racismo.
Nomes como os de Beatriz Nascimento e Lélia Gonzalez são sempre lembrados por Angela Davis como referências brasileiras para o feminismo mundial.
Desta vez, Davis voltou a dizer que "o feminismo negro nasce no Brasil", e valorizou a resistência negra no país, comparando essa luta a uma fênix: "cada vez que vocês são espancados, surgem dessas cinzas", disse durante a conferência realizada na terça-feira (11), na UFBA (Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia).
A filósofa foi uma das conferencistas do congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada, a Abralic, realizado na UFBA até ontem.
Na oportunidade, Davis fez também o lançamento do seu mais recente livro "Feminismo. Abolicionismo. Já", publicado no Brasil pela Companhia das Letras. O livro foi escrito juntamente com as intelectuais afro-americanas Erica Meiners, Beth Richie e Gina Dent, que também esteve no Brasil para o lançamento da obra.
O livro tem prefácio da professora da UFBA Denise Carrascosa e orelha da socióloga Vilma Reis.
A proposta de feminismo abolicionista apresentada no livro vem sendo defendida há pelo menos três décadas por Angela Davis, em suas pesquisas e posicionamentos contra o sistema carcerário nos Estados Unidos e ao redor do mundo, que funciona para impedir a liberdade de pessoas negras, em uma nova dinâmica escravista.
A escravidão e o cárcere são instituições de repressão estruturadas no racismo"
Angela Davis
De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça, divulgados em 2022, o Brasil superou a marca de 919 mil presos. A maioria (mais de 65%) formada por homens negros. Com esse número, o país ocupa o terceiro lugar em população carcerária no mundo, atrás apenas de China e dos Estados Unidos, com mais de 2 milhões de presos.
Abolicionismo está na base da luta feminista negra
Na obra, as autoras defendem que o feminismo abolicionista está na base dos movimentos de mulheres negras, que sempre estiveram empenhadas em lutar contra a prisão dos seus filhos e companheiros, mas está disponível para toda a sociedade.
O feminismo abolicionista é uma metodologia antirracista e anticapitalista que deve ser incorporada por todas as pessoas, independentemente do gênero ou raça, sem deixar de valorizar o papel de liderança das mulheres negras na formulação das estratégias de luta"
Angela Davis
O livro condena a expectativa social pela punição de corpos negros, que só entendem que há justiça se virem a violência sendo executada em pessoas negras, uma justiça vingativa, que gera danos ainda maiores.
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Quero receberEm sentido contrário, as autoras apresentam uma série de experiências comunitárias que tentam resolver suas questões de segurança pública sem o aparato estatal, apontadas pelas autoras como modos de justiça restauradora.
A obra chama atenção para a desconfiança que se deve ter em relação às armadilhas de cooptação política dos movimentos por abordagens reformistas de prisões e das polícias. Questionada pela coluna sobre uma possível contradição entre o pensamento abolicionista, que prega o fim do encarceramento, e os movimentos reformistas, que buscam a humanização dos espaços prisionais, com a ressocialização de condenados, Angela Davis respondeu:
"Vemos o abolicionismo feminista como uma metodologia flexível, que também pode envolver as reformas necessárias. Nós queremos que sejam observados os problemas carcerários e queremos, em última instância, eliminar as forças policiais nesse formato em que existem atualmente. Mas as reformas que nós apoiamos são as que tornam a vida das pessoas atrás das grades mais dignas e também para as pessoas que saem do sistema carcerário e querem promover uma vida melhor para elas e para suas famílias", disse Davis.
A filósofa reforça que a oposição ao sistema carcerário é necessária, pois sempre as chamadas para a reforma do sistema são sempre pensando "prisões melhores", tornando esse sistema cada vez mais poderoso e mais permanente.
Para ela, atualmente nos Estados Unidos há uma maior aceitação do conhecimento produzido pelas pessoas que passaram vários anos atrás das grades. Houve uma época na qual as pessoas que saiam do sistema carcerário não conseguiam obter nenhuma forma de sustento para suas vidas e de suas famílias.
"Como alguém que já lecionou no sistema carcerário, um tipo de reforma pela educação, eu me sinto bastante contemplada pois esse tipo de engajamento na educação fez com que as pessoas aceitassem mais o conhecimento e a incorporação dessas pessoas que passaram pelo sistema prisional", destacou.
Livro escrito por mulheres presas
Junto com o livro "Feminismo. Abolicionismo. Já" também foi lançado em Salvador a coletânea Firminas em Fuga (Editora Ogum´s Toques Negros), reunindo textos escritos por mulheres em privação da liberdade.
A obra resulta do projeto coordenado pela advogada e professora do curso de Letras da Ufba, Denise Carrascoa, chamado "Corpos Indóceis e Mentes Livres", que realiza oficinas de escrita literária no Conjunto Penal Feminino de Salvador e mantem, junto com as mulheres presas, uma biblioteca que possibilita a remissão de pena pela leitura.
Depois de falar para estudantes e professores na universidade, Angela Davis seguiu para o presidio de Salvador para compartilhar com as mulheres presas o lançamento das suas obras.
Ela que também já esteve presa, em 1970, acusada de conspiração e homicídio após envolvimento com o movimento dos Panteras Negras nos EUA, passou a contribuir para um debate mundial sobre a privação de liberdade das pessoas negras.
Dentro de um ecossistema feminista internacionalista, é precisamos enfatizar que nós, que moramos no norte global, temos muito o que aprender com os movimentos gerados no sul, especialmente com as tradições do feminismo negro no Brasil"
Angela Davis
E destacou o peso dado às tradições religiosas afro-brasileiras: "O feminismo negro nasce no Brasil. O Brasil é um país no qual, no contexto do candomblé, a liderança de mulheres negras mais velhas é levada a sério, é respeitada."
Como tantos negros, Oxalá também foi preso injustamente
Na Bahia, Angela Davis foi apresentada à contadora de histórias e religiosa do candomblé Nanci de Souza Silva, a egbomi Cici de Oxalá, ou Vovó Cici como é carinhosamente chamada nas rodas que reúne crianças e adultos atentos às narrativas contadas por ela.
Egbomi Cici trabalhou ao lado do fotógrafo e etnólogo francês Pierre Verger até sua morte, em 1996. Ela o ajudou a catalogar mais de 11 mil fotografias históricas de tradições e cultos de países africanos como Togo, Gana, Nigéria e Benin.
Ainda hoje, Vovó Cici mantém seu trabalho de preservação das memórias africanas na Fundação Pierre Verger, em um bairro negro de Salvador, o Engenho Velho de Brotas.
Na quarta-feira (12), Vovó Cici, 83, recebeu o título de doutora honoris causa pela UFBA, em reconhecimento aos seus conhecimentos sobre a cultura afro-brasileira e sua contribuição para a difusão das heranças africanas no Brasil, na formação de crianças, estudantes e pesquisadores de todo o mundo que buscam informações da sábia griô.
Em seus ensinamentos, mitos preservados pela narrativa oral, que falam de reinos avançados, heróis e heroínas aprisionados, estratégias de resistências, modos de união e de continuidades, que podem servir de orgulho e de inspiração para quem sofre ainda hoje as consequências do colonialismo, da escravidão e do racismo.
Em seu discurso, Vovó Cici falou do prazer em conhecer, dias antes, uma referência desde sua época de estudantes, com a qual tinha muitas semelhanças, por enfrentar os difíceis anos da década de 1960, realizando passeatas, correndo da polícia e ostentando seu cabelo black power.
Angela me ensinou a gritar e a empunhar uma bandeira"
Egbomi Cici de Oxalá
No encontro entre as duas, ao ouvir Angela falar sobre o abolicionismo e injustiças nas prisões, Vovo Cici fez o que melhor saber fazer. Ela contou à ativista norte-americana um dos mitos do orixá Oxalá, uma história de muitos ensinamentos preservada até hoje nos terreiros de Candomblé.
Vou tentar resumir um dos contos catalogados por Pierre Verger na obra Lendas Africanas dos Orixás (Editora Corrupio, 1985). A Fundação Pierre Verger criou um aplicativo, onde é possível ouvir essas narrativas na voz da própria egbomi Cici:
Conta-se que Olalufã era o rei de Ilu-ayê, a terra dos ancestrais. Ele estava muito velho, curvado pela idade, e andava com dificuldade, apoiado num grande cajado, chamado opaxorô. Um dia, Oxalufã decide viajar em visita a seu velho amigo Xangô, rei de Oyó. A viagem foi difícil, cheia de incidentes desagradáveis, mas Oxalufã se manteve obstinado. Ao cruzar a fronteira do reino de Xangô, com o corpo e os trajes marcados pela viagem, Oxalufã reconhece o cavalo que havia ofertado ao amigo há tempos. Oxalufã tenta acalmar o animal para amarrá-lo e leva-lo a Xangô. Neste instante, chegam os soldados do reino, que estavam perseguindo o animal e gritam: "Olhem, o ladrão de cavalo".
Caíram todos sobre Oxalufã, cobrindo-o de pancadas, arrastaram-no até a prisão.
Oxalufã nada disse, mas usou seus poderes do fundo da prisão. Enquanto ele esteve preso, não choveu, a colheita secou, os animais foram dizimados, as mulheres ficaram estéreis. O reino de Xangô foi devastado.
Ao consultar um babalaô, Xangô descobre que tudo era consequência de um ato lastimável. Um velho preso injustamente. Ao descobrir que se tratava de Oxalufã, incrédulo, Xangô manda chamar todos os generais, cavaleiros, músicos, caçadores, todas as mulheres e todo o povo de Oyó e ordena que todos vistam-se de branco em respeito a Oxalufã, o rei que veste branco. Em sinal de arrependimento, todos deveriam ir buscar água no rio para lavar Oxalufã, como pedido de perdão.
Esse episódio, da prisão injusta de Oxalufã, é relembrado em todos os terreiros de candomblé da Bahia que realizam o ritual das Águas de Oxalá, quando todos os filhos e filhas de santo em cortejo carregam água para lavar os objetos sagrados do culto a Oxalá.
O poder dessa história, de como uma prisão injusta atinge a toda uma comunidade, contada pela griô egbomi Cici a uma das mais importantes ativistas pelos direitos das pessoas pretas, constitui os modos de resistência das mulheres negras ensinados nas organizações políticas, nos grupos comunitários, nas expressões artísticas e nas práticas religiosas, que alimentam a luta contra as injustiças e pela liberdade.
A visita de Angela Davis novamente à Bahia e o encontro com a doutora egbomi Cici de Oxalá deu à filósofa mais motivos para continuar acreditando na força de um movimento que valoriza os conhecimentos ancestrais como ferramentas das lutas cotidianas.
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