André Santana

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Opinião

Pacto da branquitude rouba a cena em 'Ilhados com a sogra'

Severina Tenório, do reality show "Ilhados com a sogra", da Netflix, sofreu no programa a rejeição comum às mulheres pretas, pobres e nordestinas, que são insubmissas diante das opressões.

A coragem e a sabedoria de quem já resistiu às várias violências na vida assustaram as pessoas que esperam das Severinas a obediência e o silêncio.

Minha língua é minha arma, meu escudo e meu Deus, avisou logo a participante que protagonizou o enredo dos oito episódios da nova atração da plataforma de streaming.

Com autenticidade e muita inteligência, Severina dominou as situações tensas, lidando com um drama familiar e com a tentativa de exclusão que se organizou contra ela. E ainda ganhou provas.

Não há maior campeã do "Ilhados com a sogra" do que Severina Tenório e sua trajetória de "suor, suingue e vitória", como ela mesmo definiu.

Abordagem rasa de temas complexos

Sempre que estreia um novo reality show no Brasil, já se imagina a forma rasa com que assuntos tão complexos como racismo e machismo serão abordados na superficialidade do entretenimento.

Para piorar, as produções parecem escolher com maestria e crueldade os perfis de pessoas negras que querem lançar no picadeiro do divertimento da tal "vida real".

"Ilhados com a sogra" só confirma essa ação proposital já que a família Tenório, de cara, é a que apresenta a realidade mais difícil de ser tratada na dinâmica do jogo: o casal com menos tempo de relacionamento e a única família em que sogra e genro ainda nem se conheciam.

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Todas as histórias das sogras expostas no programa merecem respeito e garantem emoção suficientes. Algumas são de cortar o coração, como a que perdeu a própria casa para a nora ou a mãe que nunca se recuperou da morte trágica do filho.

Mas o programa não seria tão interessante e dinâmico sem a presença das sogras das famílias fora do padrão normativo exigido pela sociedade: Socorro Sansone, a mãe que acolheu desde sempre seu filho gay — mas que sofre com a frieza e grosseria do genro, que não teve na vida a mesma sorte desse amor familiar —, e Severina Tenório, que oferece ao país que tanto a maltratou ensinamentos de fé, resistência e muito amor à sua própria trajetória de mãe negra.

Diferente das outras histórias, marcadas por superproteção, ciúmes e disputas com a sogra pela centralidade na vida da pessoa amada, o que se apresenta na família Tenório é o desespero de uma mãe inconformada com o fato da filha ter ido morar, de forma repentina, com um homem desconhecido por ela e sem estrutura financeira.

Eu não dei a ela um curso superior para ela morar em uma quitinete.

A conquista da formação profissional de um filho é uma alegria para qualquer mãe. Mas nem todas sabem o valor que é para uma retirante, nascida na Paraíba, formar uma filha negra na universidade, depois de ser abandonada e ter que criar sozinha duas meninas, com o salário de trabalhadora doméstica em São Paulo.

Severina não se faz de vítima, com ela não tem mimimi. Ela cobra pesado da sociedade o respeito que sua vida merece. Tem todo o direito de cobrar do atrapalhado genro e dos outros participantes mais consideração por essa história — que é semelhante à de muitas mulheres negras que resistem ao preconceito e à exclusão deste país racista, machista e nordestinofóbico.

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Severina Tenório e o genro participaram do reality show "Ilhados com a sogra", da Netflix
Severina Tenório e o genro participaram do reality show "Ilhados com a sogra", da Netflix Imagem: Reprodução/Netflix

Participantes fazem pacto para excluir família de Severina

É óbvio que tanta ousadia causaria desconforto nas outras famílias, que logo se uniram contra os Tenórios, tendo como ponto de convergência os privilégios garantidos pela branquitude.

É o "pacto narcísico da branquitude", que devemos sempre apontar desde que a psicóloga Cida Bento definiu tão bem esses compromissos de proteção e promoção estabelecidos entre as pessoas brancas para manter os privilégios proporcionados pela estrutura racial, que exclui e impede o acesso dos não-brancos a direitos e oportunidades.

Eu ser inteligente é uma afronta. Eu sou uma preta, nordestina, diarista, é exatamente isso, diz Severina desarmando as possíveis desculpas esfarrapadas para estigmatizá-la como revoltada e sem educação.

Ao apontar o racismo e o preconceito no tratamento que recebeu, Severina sofre ainda mais a fúria de um país que não vê problema em discriminar, mas não aceita ser apontado em sua discriminação.

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Parem de identitarismo, me deixem ser racista em paz, querem os cidadãos de bem do Brasil orgulhosos da sua cordialidade racial colonial.

A palavra racismo nem é citada no programa — pelo menos na edição disponibilizada pela plataforma — e, caso alguém fosse chamado de racista, com certeza a situação dos Tenórios seria ainda mais difícil.

É assim que vivemos com o racismo estampado em atos e ofensas, mas nunca nomeado.

Gatilhos de ofensas racistas

Em meio aos ensinamentos dados por Severina e da torcida para que ela responda à rejeição com êxito nas provas de resistência, há dores provocadas pelo gatilho de ofensas racistas tão conhecidas por pessoas negras.

É muito triste ouvir as palavras ofensivas destinadas a Severina, de ódio e inconformidade com a sua presença marcante.

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Uma candidata chega a preferir ficar no pior cômodo para não ter que dividir espaço com a família Tenório. Outra, que inclusive é tão preta quanto Severina, mas enquadrada na simpatia e conformismo que os brancos exigem, diz que aceita perder para qualquer família, "menos para eles".

Severina não gozou da empatia e da solidariedade nem das outras mães, mesmo depois de relatar seu passado, com a expulsão de casa pela própria mãe e o abandono do marido quando a filha ainda era bebê.

Como alertou a psicóloga Shenia Karlsson, mediadora dos diálogos familiares, as mulheres devem superar a ideia de rivalidade e disputa imposta pelo patriarcado. Permanecendo unidas em suas dores, se fortalecem frente ao machismo.

Vale assistir até o fim pelas histórias de vida, pela dinâmica do roteiro e edição e pela simpatia da apresentadora Fernanda Souza. Algumas descobertas feitas pelas sogras são inspiradoras, como a possibilidade de acolher a pessoa escolhida pelos filhos e, acima de tudo, a vida que precisam experimentar para além das funções de mães e avós.

"Ilhados com a sogra" é uma lente de aumento bem gorda da realidade, como definiu o participante que tentou interpretar o vilão da narrativa.

Portanto, está lá o racismo nosso de todos os dias, contra o qual mulheres como Severina nos ensinam a nos insurgir com altivez e dignidade.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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