Pacto da branquitude rouba a cena em 'Ilhados com a sogra'
![Severina Tenório, de "Ilhados com a sogra", reality show da Netflix Severina Tenório, de "Ilhados com a sogra", reality show da Netflix](https://conteudo.imguol.com.br/c/noticias/30/2023/10/21/severina-tenorio-de-ilhados-com-a-sogra-reality-show-da-netflix-1697918803419_v2_450x600.jpg)
Severina Tenório, do reality show "Ilhados com a sogra", da Netflix, sofreu no programa a rejeição comum às mulheres pretas, pobres e nordestinas, que são insubmissas diante das opressões.
A coragem e a sabedoria de quem já resistiu às várias violências na vida assustaram as pessoas que esperam das Severinas a obediência e o silêncio.
Minha língua é minha arma, meu escudo e meu Deus, avisou logo a participante que protagonizou o enredo dos oito episódios da nova atração da plataforma de streaming.
Com autenticidade e muita inteligência, Severina dominou as situações tensas, lidando com um drama familiar e com a tentativa de exclusão que se organizou contra ela. E ainda ganhou provas.
Não há maior campeã do "Ilhados com a sogra" do que Severina Tenório e sua trajetória de "suor, suingue e vitória", como ela mesmo definiu.
Abordagem rasa de temas complexos
Sempre que estreia um novo reality show no Brasil, já se imagina a forma rasa com que assuntos tão complexos como racismo e machismo serão abordados na superficialidade do entretenimento.
Para piorar, as produções parecem escolher com maestria e crueldade os perfis de pessoas negras que querem lançar no picadeiro do divertimento da tal "vida real".
"Ilhados com a sogra" só confirma essa ação proposital já que a família Tenório, de cara, é a que apresenta a realidade mais difícil de ser tratada na dinâmica do jogo: o casal com menos tempo de relacionamento e a única família em que sogra e genro ainda nem se conheciam.
Todas as histórias das sogras expostas no programa merecem respeito e garantem emoção suficientes. Algumas são de cortar o coração, como a que perdeu a própria casa para a nora ou a mãe que nunca se recuperou da morte trágica do filho.
Mas o programa não seria tão interessante e dinâmico sem a presença das sogras das famílias fora do padrão normativo exigido pela sociedade: Socorro Sansone, a mãe que acolheu desde sempre seu filho gay — mas que sofre com a frieza e grosseria do genro, que não teve na vida a mesma sorte desse amor familiar —, e Severina Tenório, que oferece ao país que tanto a maltratou ensinamentos de fé, resistência e muito amor à sua própria trajetória de mãe negra.
Diferente das outras histórias, marcadas por superproteção, ciúmes e disputas com a sogra pela centralidade na vida da pessoa amada, o que se apresenta na família Tenório é o desespero de uma mãe inconformada com o fato da filha ter ido morar, de forma repentina, com um homem desconhecido por ela e sem estrutura financeira.
Eu não dei a ela um curso superior para ela morar em uma quitinete.
A conquista da formação profissional de um filho é uma alegria para qualquer mãe. Mas nem todas sabem o valor que é para uma retirante, nascida na Paraíba, formar uma filha negra na universidade, depois de ser abandonada e ter que criar sozinha duas meninas, com o salário de trabalhadora doméstica em São Paulo.
Severina não se faz de vítima, com ela não tem mimimi. Ela cobra pesado da sociedade o respeito que sua vida merece. Tem todo o direito de cobrar do atrapalhado genro e dos outros participantes mais consideração por essa história — que é semelhante à de muitas mulheres negras que resistem ao preconceito e à exclusão deste país racista, machista e nordestinofóbico.
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Participantes fazem pacto para excluir família de Severina
É óbvio que tanta ousadia causaria desconforto nas outras famílias, que logo se uniram contra os Tenórios, tendo como ponto de convergência os privilégios garantidos pela branquitude.
É o "pacto narcísico da branquitude", que devemos sempre apontar desde que a psicóloga Cida Bento definiu tão bem esses compromissos de proteção e promoção estabelecidos entre as pessoas brancas para manter os privilégios proporcionados pela estrutura racial, que exclui e impede o acesso dos não-brancos a direitos e oportunidades.
Eu ser inteligente é uma afronta. Eu sou uma preta, nordestina, diarista, é exatamente isso, diz Severina desarmando as possíveis desculpas esfarrapadas para estigmatizá-la como revoltada e sem educação.
Ao apontar o racismo e o preconceito no tratamento que recebeu, Severina sofre ainda mais a fúria de um país que não vê problema em discriminar, mas não aceita ser apontado em sua discriminação.
Parem de identitarismo, me deixem ser racista em paz, querem os cidadãos de bem do Brasil orgulhosos da sua cordialidade racial colonial.
A palavra racismo nem é citada no programa — pelo menos na edição disponibilizada pela plataforma — e, caso alguém fosse chamado de racista, com certeza a situação dos Tenórios seria ainda mais difícil.
É assim que vivemos com o racismo estampado em atos e ofensas, mas nunca nomeado.
Gatilhos de ofensas racistas
Em meio aos ensinamentos dados por Severina e da torcida para que ela responda à rejeição com êxito nas provas de resistência, há dores provocadas pelo gatilho de ofensas racistas tão conhecidas por pessoas negras.
É muito triste ouvir as palavras ofensivas destinadas a Severina, de ódio e inconformidade com a sua presença marcante.
Uma candidata chega a preferir ficar no pior cômodo para não ter que dividir espaço com a família Tenório. Outra, que inclusive é tão preta quanto Severina, mas enquadrada na simpatia e conformismo que os brancos exigem, diz que aceita perder para qualquer família, "menos para eles".
Severina não gozou da empatia e da solidariedade nem das outras mães, mesmo depois de relatar seu passado, com a expulsão de casa pela própria mãe e o abandono do marido quando a filha ainda era bebê.
Como alertou a psicóloga Shenia Karlsson, mediadora dos diálogos familiares, as mulheres devem superar a ideia de rivalidade e disputa imposta pelo patriarcado. Permanecendo unidas em suas dores, se fortalecem frente ao machismo.
Vale assistir até o fim pelas histórias de vida, pela dinâmica do roteiro e edição e pela simpatia da apresentadora Fernanda Souza. Algumas descobertas feitas pelas sogras são inspiradoras, como a possibilidade de acolher a pessoa escolhida pelos filhos e, acima de tudo, a vida que precisam experimentar para além das funções de mães e avós.
"Ilhados com a sogra" é uma lente de aumento bem gorda da realidade, como definiu o participante que tentou interpretar o vilão da narrativa.
Portanto, está lá o racismo nosso de todos os dias, contra o qual mulheres como Severina nos ensinam a nos insurgir com altivez e dignidade.
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