André Santana

André Santana

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Reportagem

Diplomata negra entra na Justiça por direito à promoção no Itamaraty

Foi impetrado ontem um mandado de segurança preventivo no STJ (Superior Tribunal de Justiça) em favor da diplomata Isabel Cristina de Azevedo Heyvaert, encarregada de negócios junto à Embaixada do Brasil em Mianmar, no continente asiático.

A ação visa garantir a promoção da servidora ao cargo de ministra de primeira classe do quadro especial do Ministério das Relações Exteriores, por preencher todos os requisitos relacionados a merecimento e antiguidade.

Isabel Heyvaert é a mulher negra de maior posição na hierarquia do Itamaraty. Ela aguarda a ascensão ao posto de embaixadora, fato raro na história da diplomacia brasileira.

Servidora há 37 anos, Isabel atualmente é ministra de segunda classe, último cargo na carreira diplomática antes dos embaixadores, que são ministros de primeira classe (há também embaixadores por indicação do presidente da República, que podem não ter trajetória na diplomacia).

O documento do mandado de segurança, ao qual a coluna teve acesso, aponta a discriminação que a diplomata vem sofrendo como mulher negra e destaca que, além das mais de três décadas de "efetivo serviço para a União", ela não possui condenações ou impedimentos.

Ainda que preencha com clareza os requisitos cabíveis para a promoção, a impetrante vem sendo preterida a referido direito, por meio de atos coatores praticados pelo Ministério das Relações Exteriores.
Escritório Márlon Reis & Estorilio Advogados

Contradição com posicionamentos internacionais do governo Lula

Questionada pela coluna se considera que realmente trata-se de uma discriminação pelo fato de ser uma mulher negra, Isabel Heyvaert confirma a denúncia:

"Muito objetivamente minha resposta é afirmativa. Essa é uma percepção que, naturalmente, vem se intensificando ao longo de muitos anos de observação da carreira. Mas o anúncio, em novembro último, da promoção de um colega em 61º posição, enquanto eu me encontrava em 22º posição, confirmou, definitivamente, a ausência de compromisso da Casa com as políticas públicas, implementadas pelo atual governo com vistas à promoção da igualdade de gênero e promoção da diversidade, em todas as esferas da sociedade brasileira", afirma a diplomata.

A diplomata também chama atenção para a contradição entre a atitude do Ministério das Relações Exteriores e os compromissos internacionais assumidos pelo presidente Lula:

"A situação torna-se ainda menos palatável quando isso se faz contra um pano de fundo de posicionamento claro do presidente Lula, quando, por exemplo, perante a última Assembleia Geral da ONU, ele assume, voluntariamente, em nome do Brasil, o ODS 18 (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU), ou seja, o da Eliminação do Racismo no Brasil", completa Heyvaert.

O anúncio das promoções impede a ascensão da única, repito única, diplomata negra, qualificada e apta a ser promovida ao nível mais elevado da carreira
diplomata Isabel Cristina de Azevedo Heyvaert, da Embaixada do Brasil em Mianmar.

A carreira da diplomata

Isabel Heyvaert formou-se em administração de empresas, em 1976, pela Universidade de Brasília. Em 1986, obteve o diploma de bacharel em Relações Internacionais pelo Instituto Rio Branco. Atualmente está em missão transitória na Embaixada do Brasil em Mianmar. Também já atuou, como "embaixadora de facto", na Etiópia/Djibuti e na Comissão da União Africana (UA), assim como chefiou a Embaixada do Brasil na Sérvia/Montenegro, de dezembro de 2015 a janeiro de 2019. Também serviu nas Embaixadas do Brasil em Camarões e em Moçambique, além de atuar na Embaixada do Brasil em Lisboa como Adida Cultural.

Entre as honrarias recebidas ao longo da carreira estão: a Ordem de Rio Branco, no Grande Oficialato, concedida pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil; a Medalha Almirante Tamandaré da Marinha do Brasil e a Medalha Bertha Lutz, concedida pelo Senado Federal.

Um dos argumentos especificado no mandado é uma circular do ministério que anuncia a promoção, a ser efetivada em 15 de dezembro de 2024, de outro diplomata, um homem branco, conforme destaca o documento, situado na 61ª posição na lista de antiguidade, em detrimento de Isabel, que se encontra na 22ª posição na lista.

O mandado de segurança é a ação constitucional destinada a proteger direitos líquidos e certos, quando houver ilegalidade ou abuso de poder por parte de autoridade pública.

De acordo com o documento, a não promoção da ministra negra, que cumpriu todos os requisitos legais e regulamentares para a ascensão ao cargo superior, "configura ilegalidade ou abuso de poder, indo de encontro aos princípios administrativos e aos preceitos constitucionais de promoção da equidade de gênero e raça na Administração Pública brasileira".

Em contato com a coluna, a defesa da diplomata informou que espera a apreciação do pedido de liminar que tem como alvo o Ministério das Relações Exteriores e que o Judiciário suspenda as promoções para ministros de primeira classe até que seja apreciado o mérito do mandado de segurança.

Falta diversidade na diplomacia brasileira

Não há informações oficiais sobre o perfil racial dos diplomatas brasileiros. Um levantamento do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), porém, permite uma dimensão aproximada da ausência de diversidade nos cargos do Itamaraty.

Em 2020, 11,7% dos diplomatas se declaravam negros, enquanto 58,2% diziam ser brancos. Contudo, 28,2% não informaram a classificação racial.

Desde 1946, a entrada na carreira diplomática se dá por concurso público realizado pelo Instituto Rio Branco, considerado um dos mais difíceis e competitivos do país. Os conhecimentos sobre história e política internacional e o domínio de línguas estrangeiras restringem as vagas a poucos cidadãos com acesso privilegiado à formação educacional, que no Brasil é predominantemente destinado a homens brancos, oriundos da elite econômica nacional.

Em 1961 o Brasil teve seu primeiro embaixador negro em outro país: Raymundo Souza Dantas, indicado para o posto em Gana. Somente em 2010, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil deu posse ao primeiro embaixador negro do país, Benedicto Fonseca Filho -- aos 47 anos na época, ele foi também o diplomata mais jovem a chegar ao topo da carreira.

O Programa de Ação Afirmativa do Instituto Rio Branco, que oferece a Bolsa-Prêmio de Vocação para a Diplomacia, foi instituído em 2002, com a finalidade de promover igualdade de oportunidades de acesso de pessoas negras à preparação para o concurso de admissão à carreira de diplomata.

O programa tem apresentado aumento na diversidade étnica no quadro de diplomatas do Ministério das Relações Exteriores, contudo ainda não garantiu a ascensão de pessoas negras aos mais altos cargos da hierarquia da diplomacia brasileira.

Isabel Heyvaert confirmar à coluna que, além do componente racial, a discriminação de gênero também ocorre, impedindo duplamente a ascensão de mulheres negras na carreira diplomática:

"Entrei no Itamaraty quando não havia nenhum mecanismo de promoção de apoio a candidatos de baixa renda. Por isso, a minha geração não criou uma massa crítica de diplomatas negras e negros. Por outro lado, pode-se notar, o fator de discriminação de gênero atuando, mais uma vez, em favor dos colegas, homens e negros, pois três deles foram promovidos nos últimos 15 anos. Quanto a outras mulheres, competentes, esperando reconhecimento, há sim! Mas, afrodescendentes, não há!", reforça a diplomata.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Deixe seu comentário

Só para assinantes