André Santana

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Opinião

Se neste ano ainda não foi possível, em 2024 'faremos Palmares de novo'

Todas as vezes em que a nossa esperança ressurge, em que a gente deposita neste país, mais uma vez, as possibilidades de um lugar melhor, os versos do poeta José Carlos Limeira ressurgem com bastante força a nos inspirar.

Por menos que conte a história, eu não esqueço do meu povo, se Palmares não existir mais, faremos Palmares de novo
Quilombo, José Carlos Limeira, Atabaques, 1983

Em 2023, tentamos fazer Palmares de novo. Não foi à toa que acreditamos tanto naquele início de ano, simbolizado pela subida da rampa do novo presidente com representantes da diversidade dos povos excluídos deste país. Estavam ali representadas as maiorias minorizadas pelo poder.

Acreditamos porque nos últimos quatro anos fomos os grupos mais atacados e violentados pelo governo do ódio e da violência. As principais vítimas da irresponsabilidade no tratamento da Covid, do aumento da fome e do desemprego e do alarmante crescimento da quantidade de armas espalhadas no país.

Por isso, acreditamos, sim, que 2023 seria um ano de reconstrução. Rapidamente, percebemos que não. Continuamos dentro de um chamado 'governo de coalizão', onde o tal 'centrão' continua dando as ordens. Um quase parlamentarismo que desequilibra a harmonia entre os três poderes e torna o presidente da República e sua equipe submetidos aos conchavos de um parlamento que não consegue representar as demandas do povo brasileiro em sua diversidade. Assim, a presença das ministras no Planalto foi constantemente ameaçada. Algumas foram logo substituídas por homens. O mesmo aconteceu com a presidência da Caixa Econômica.

A vaga da ministra negra do STF (Supremo Tribunal Federal) não veio porque precisou dar lugar também aos homens: um branco conservador, defensor pessoal do presidente, e outro que representa bem o uso oportunista que as elites fazem do debate sobre representatividade. A segunda vaga do STF revela bem como demandas sérias como raça, regionalidade e posicionamento político podem ser misturadas para confundir e calar reivindicações justas.

O debate sobre ocupação de espaços por representatividade, que o presidente diz desconsiderar como critério, é muito importante e precisaremos fazê-lo em 2024.

Se por um lado, o aumento dos auto declarados pretos é uma conquista da luta pela consciência negra, o aumento dos pardos requer uma discussão mais ampla.

Não podemos aceitar em silêncio apenas a autodefinição de pardo em um país ainda marcado por tantas desigualdades raciais em que o preto retinto sofre as mazelas históricas do racismo. Não podemos aceitar que gente bem-nascida, herdeira, com histórico familiar de privilégios, queira receber benefícios de uma luta justa, se autodeclaram pardas. Não podemos aceitar que, nem na esquerda nem na direita, políticos sigam o caminho do ACM Neto, o afro-conveniente candidato ao governo da Bahia.

Para isso faremos Palmares de novo.

As bases que encorajam nossas lutas estão fincadas, basta nossa união e conhecimento da nossa história. Palmares continua de pé, seja no histórico município de União de Palmares, na Serra da Barriga, em Alagoas, que mantém vida a memória do quilombo na terra da liberdade.

Estive lá em novembro para participar do Congresso de Pesquisadores Negros do Nordeste e pude ouvir descobertas importantes de pesquisadores dedicados ao tema, como por exemplo, os relatos dos navegadores europeus que no século XVII trataram Palmares como um Estado, com organização social e política sob comando do líder Zumbi, tratado como estadista e comandante do exército palmarino. Palmares foi considerado um Estado antes até do Brasil se tornar uma nação.

Palmares foi destruído pelo ódio colonial contra a possibilidade do povo negro repetir a organização civilizatória que possuía antes da invasão europeia na África, com a tragédia da colonização e escravização.

Palmares também continua na luta pela memória do Quilombo da Saracura, no centro de São Paulo, provando que na maior metrópole do país tem muito sangue negro pisado. A saracura está lá para mostrar que os bandeirantes, além do sangue indígena, também fizeram jorrar sangue negro nas margens do rio Saracura. Todos os itens históricos encontrados nas escavações para ampliação do metrô para o Bixiga, inclusive objetos ritualísticos da religiosidade negra, reafirmam a existência daquele quilombo.

As águas do Saracura ainda estão lá, inquietando as obras de intervenção no local e reanimando as esperança daquela comunidade, reunida nas batidas do samba da Vai-Vai, e também na luta de um povo pela reconstituição da sua memória em torno da estação de metrô Saracura Vai-Vai.

Nós não podemos esquecer a quantidade de lideranças quilombolas que tombaram neste ano de 2023, na luta pela terra, uma disputa sangrenta que aniquila os povos originários, os povos indígenas da Amazônia e também mata povos tradicionais, remanescentes de quilombo. Uma das maiores lideranças dessa luta, que dedicou sua vida à defesa dos quilombos, Mãe Bernadete Pacífico, do quilombo Pitanga dos Palmares, foi assassinada pela incapacidade do governo brasileiro de preservar sua vida. Ela fazia parte do programa de proteção aos defensores de direitos humanos.

Mãe Bernadete foi morta junto com as milhares de vidas negras perdidas pela violência, por vezes cometida pelo próprio estado. Nos 10 primeiros meses de 2023, ocorreram 5.268 mortes por ação das forças de segurança. A Bahia, governada pelo Partido dos Trabalhadores pelo quinto mandato consecutivo, foi o estado brasileiro que registrou o maior número de mortes por intervenção policial do Brasil, 1.410 ou seja, 27% das mortes nacionais. O número é quase o dobro do Rio de Janeiro (770) e superior ao de São Paulo (407).

Os números foram compilados pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública e divulgados na quarta-feira (27).

Também outros quilombolas nos deixaram neste ano: o escritor Nêgo Bispo, do quilombo Saco Curtume, município de São João do Piauí, e o ex-deputado federal Luiz Alberto dos Santos, pioneiro do movimento negro brasileiro, nascido no quilombo Baixa do Guaí, em Maragogipe, município do Recôncavo da Bahia.

Dois pensamentos bem distintos sobre a institucionalização das nossas lutas, com estratégias diferentes para fazer ecoar as demandas do povo negro, recebendo do poder a mesma resposta negativa, seja na construção institucional e partidária ou seja na insubmissão radial aos regimes de dominação.

Lamentamos também, neste ano, a perda de duas mulheres fundamentais para reconfigurar a imagem negra nas telas, nas artes, na comunicação. A atriz Léia Garcia e a jornalista Glória Maria se foram, neste ano de 2023, em meio ao crescimento da presença negra na televisão brasileira.

Atualmente podemos ver a competência de mais colegas jornalistas negros, além do protagonismo negro nas histórias narradas pela teledramaturgia, algo que Glória Maria com certeza gostaria de ter noticiado e que Dona Léia gostaria de poder vivenciar, com melhores papéis do que aqueles que, historicamente, a televisão ofereceu para ela.

É no legado desses nossos ancestrais, desses bakulos, que serão sempre bem-lembrados, que seguiremos, buscando forças na memória dos quilombos.

Em 2024 continuaremos de pé, em marcha, honrando esse legado e repetindo sempre que se Palmares não existe mais, faremos Palmares de novo.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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