André Santana

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Opinião

Renascer: Os conflitos de terra que não aparecem no Horário Nobre

A disputa por terra no Brasil, que vitima cotidianamente povos originários e comunidades tradicionais, não aparece nos dramas das telenovelas. Nos enredos televisivos, protagonizados por homens brancos endinheirados, os conflitos, mesmo sangrentos, são limitados a disputas entre vizinhos ou guerra por heranças familiares.

A estrutura de dominação e opressão por parte de grandes latifundiários, organizada desde o processo de colonização do país e que permanece fazendo vítimas cotidianamente, não são evidenciadas nas tramas.

Ao contrário, as histórias buscam celebrar a força do agronegócio e a irremediável exploração do campo pelo avanço das máquinas e tratores, anunciados com destaque nas cenas das novelas, cujas trilhas reforçam a hegemonia midiática da indústria da música sertaneja.

Depois da cansativa perseguição a uma viúva que ousou plantar e colher em Terra e Paixão, estreou nessa semana mais uma telenovela cuja história aborda as disputas por terras no Brasil entre grandes proprietários rurais, seguindo a mesma logica já exploradas em produções como Pantanal: o Brasil rural visto pelo ponto de vista de quem tem terras em abundância e mesa farta.

O remake de Renascer, escrita por Bruno Luperi a partir da sucesso de 1993, criado pelo avô Benedito Ruy Barbosa, traz à cena os antigos coronéis do cacau do sul da Bahia, que travam brigas sangrentas para aumentar seu poderio econômico.

Nos primeiros capítulos, que marcam a primeira fase da trama, muitas tocaias, tiros, mortes e até a crueldade da pele arrancada de um cidadão ainda vivo.

Toda essa violência que inspira as narrativas ficcionais passa distante do cotidiano de perdas e ameaças às quais estão submetidos muitos brasileiros que ocupam as áreas rurais do país.

As vítimas da violência do campo noticiadas nos telejornais não são protagonistas dos enredos televisivos centrados nos interesses de homens brancos, ricos e acumuladores de terras e empregados.

Liderança indígena é morta na Bahia

O assassinato da liderança indígena Nega Pataxó, no sul da Bahia, no dia 20, em meio à ação de um grupo de 200 fazendeiros e comerciantes da região que tentavam recuperar por meios próprios, sem decisão judicial, a posse de uma fazenda ocupada por indígenas, revela a truculência dos conflitos de terra no Brasil que não está na história contadas pelas novelas.

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Mais uma mulher, em busca de defender sua comunidade, dentro do espaço ancestral sagrado e originário, tem sua vida ceifada.

Maria Fátima Muniz de Andrade, a Nega Pataxó, era majé (feminino de pajé) da comunidade Pataxó Hã-hã-hãe e irmã do cacique Nailton Muniz Pataxó, que foi baleado durante a ação. Os crimes ocorreram na Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguassu, na zona rural do município de Potiraguá, no sudoeste da Bahia e, segundo denúncias ainda em investigação, contaram com a participação ou omissão de agentes da Polícia Militar da Bahia, que teriam presenciado os ataques aos indígenas e nada fizeram.

Na Bahia, fundo e fecho de pasto são as principais vítimas da violência

Essa é a realidade das disputas por terra que fazem sangrar comunidades em territórios tradicionais do Brasil profundo.

Os povos indígenas são a população que mais sofre com os conflitos por terra, junto com assentados, pequenos agricultores familiares e remanescentes quilombolas.

Na Bahia, entre os principais alvos da violência no campo também estão as comunidades de fundo e fecho de pasto, que ocupam áreas do semiárido para criação de gado à solta, além do extrativismo e de pequenas lavouras.

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Essas comunidades vivem sobre a ameaça da grilagem das terras comunitárias, a adulteração de documentos de posse, a intimidação violenta aos moradores e a ameaça à vida de lideranças.

O estado da Bahia, que possui a maior quantidade de comunidades quilombolas do Brasil e a segunda maior população indígena do país, é também o que registra um dos piores índices de violência no campo.

O assassinato de Nega Pataxó se junta a crimes bárbaros ocorridos em territórios baianos como o que vitimou a liderança nacional quilombola, mãe Bernadete Pacífico, assassinada com 12 tiros, em agosto do ano passado, no quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador.

Em 2017, a mesma comunidade quilombola baiana presenciou o assassinato de Flávio Gabriel Pacifico dos Santos, conhecido como "Binho do Quilombo", filho de mãe Bernadete e também uma liderança em defesa da titulação das terras comunitárias.

Atualmente, a Bahia tem como governador Jerônimo Rodrigues (PT), que se autodeclara indígena. É o quinto mandato consecutivo do Partido dos Trabalhadores à frente do executivo baiano e os números de morte no campo só aumentaram nesses quase 20 anos.


Aprovação do Marco Temporal piora conflitos

Ao condenar o crime contra Nega Pataxó, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) reforçou a importância da demarcação de terras indígenas para solucionar o crescente conflito de terras no país.

Para a entidade, a aprovação do Marco Temporal pelo Congresso Federal acentua a intransigência dos invasores, que se sentem autorizados a praticar todo tipo de violência.

A lei do Marco Temporal foi promulgada pelo Senado, no final do ano passado, depois que o Congresso derrubou vetos do presidente Lula ao projeto, considerado o maior retrocesso sobre os direitos dos indígenas da história.

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A lei animou ainda mais a sanha violenta de ruralistas contra os povos que ocupam os territórios do Brasil mesmo antes deste se constituir como um país. Assim, povos indígenas como os Pataxós da Bahia e os Yanomamis da Amazônia, vivem sob clima de guerra, com a ação de garimpeiros ilegais e grileiros truculentos.

Abordar de forma realista as controversas do Marco Temporal e as consequências para os povos que dependem do acesso à terra como única forma de sobrevivência seria uma rica contribuição deste remake de renascer para atualização da trama de Benedito Ruy Barbosa. O próprio autor já havia promovido diálogos com as urgentes e necessárias reivindicações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na novela O Rei do Gado, de 1996.

Enquanto isso, a violência do campo é amenizada no horário nobre pelo carisma de coronéis vividos por artistas amados pelos telespectadores, que quase sempre recebem a redenção das suas vilanias nos capítulos finais das telenovelas.

A sangrenta disputa por terra se torna apenas pano de fundo para que o Brasil acompanhe com torcida o desfecho de dramas familiares e decepções amorosas, que humanizam os grandes latifundiários, muitos vilões da vida real.

Para além dos roteiros românticos, o drama real genocida e colonizador precisa alcançar a maior mídia vista pela sociedade brasileira e quem sabe assim gerar a indignação pelas vidas negras e indígenas interrompidas.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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