André Santana

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Reportagem

Herdeiros de criador do trio elétrico vão à Justiça por marca Dodô e Osmar

O espaço mais concorrido pelos artistas que se apresentam no Carnaval de Salvador, atualmente, é o trecho de cerca de 4km da orla da cidade, entre o Farol da Barra e a Praia de Ondina

O circuito que concentra o maior número de hotéis, camarotes e câmeras de TV é chamado Dodô, em homenageia a Adolpho Antônio Nascimento, o músico e artesão, que junto com o amigo Osmar Álvares de Macêdo, foi responsável pela principal inovação da folia, o trio elétrico, palco móvel equipado com tecnologia que possibilita a comunicação dos artistas com o grande público pelas ruas por onde passa.

No processo de criação do trio elétrico, nos anos de 1940 e 1950, a dupla Dodô e Osmar inventou também a fobica e o pau elétrico, depois chamado guitarra baiana, que foram decisivos para a técnica de amplificação sonora do Carnaval, já que desenvolveram uma tecnologia para aumentar os instrumentos de corda e retirar a microfonia.

No entanto, os grandes feitos que impulsionaram os festejos de rua são objetos de uma disputa judicial entre as famílias Macêdo e Nascimento pela herança da propriedade intelectual da dupla.

A ação que tramita na Justiça baiana foi iniciada pelos descendentes de Dodô, que alegam um apagamento do protagonismo do músico, que também era técnico em eletrônica, na história de criação do trio elétrico.

Isso porque, em 1996, a família Macêdo registrou a marca "Dodô & Osmar", como propriedade privada em nome de Aroldo Costa Macedo, um dos filhos de Osmar, deixando a família Nascimento fora dos trâmites.

O uso comercial se restringiu, então, a um só lado da dupla, como a captação de recursos, a realização de eventos e promoção em torno da marca. Os herdeiros de Dodô resolveram reagir ao que consideram deturpações na história do Carnaval e esquecimento do músico inventor.A família não está atrás de dinheiro, e sim de uma reparação histórica, já que o legado de Dodô está correndo o risco de ser usurpado por uma apropriação indébita e um apagamento
Mara Machado Nascimento, neta de Dodô

Dupla Elétrica: Dodô e Osmar e suas invenções
Dupla Elétrica: Dodô e Osmar e suas invenções Imagem: DNA Dodô

O trio Armandinho, Dodô e Osmar, que explora a marca, é uma das atrações mais celebrados do Carnaval de Salvador e, todos os anos, arrasta multidões apaixonadas pela música dos Irmãos Macêdo, grupo formado por André no vocal, Betinho no baixo e, na guitarra baiana, Aroldo e o virtuoso Armandinho, 70, um dos músicos mais respeitados do país.

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Para o Carnaval 2024, o grupo está anunciando desfilar em comemoração dos 50 anos da banda nos dois principais circuitos da folia: Dodô (Barra-Ondina) e Osmar (Campo Grande), com patrocínio da Bahiagás, empresa pública de gás natural da Bahia.

Recursos captados pela marca chegam a R$ 3 milhões

O processo no Tribunal de Justiça da Bahia, à qual a coluna teve acesso, tem como autora Barbara Rita da Hora Nascimento, filha de Dodô e parte do espólio do artista, e é uma ação de tutela inibitória cumulada com pedido de indenização por danos morais e materiais por violação de direitos autorais.

A ação tem como foco a integridade da contribuição artística, científica e cultural do legado de Adolpho Antônio Nascimento, o Dodô.

Segundo explicou o advogado Bruno Uchoas, que representa o espólio de Dodô, o processo iniciado pelos descendentes do inventor é muito mais que uma questão patrimonial, tem um cunho moral.

Do ponto de vista jurídico, é uma ação contra danos causados à própria pessoa [Dodô], a sua memória e a tudo que sua história representa para a cultura brasileira e, principalmente, para o Carnaval da Bahia

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A ação tem também uma função reparatória, uma vez que a família se sente lesada, dentro de uma perspectiva moral de ver o nome do avô e do pai utilizado na captação de recurso e promoção de eventos culturais que subvertem a verdade histórica dos acontecimentos
Bruno Uchoas

De acordo com o processo, o histórico de captação de recursos públicos feito pela Terra do Som - Produções Artísticas LTDA, empresa de Aroldo Macedo, somente a partir de 2011, somam mais de R$ 2,6 milhões, além de outros mais de R$ 350 mil, captados junto a órgãos e entidades públicas, sem nenhum ressarcimento à família Nascimento.

UOL tentou contato com a família Macêdo, através da assessoria do grupo Irmãos Macêdo, mas não obteve retorno.

Disputa judicial por marca e duas invenções

Na petição judicial feita pela família Nascimento é destacado que: "A proteção do patrimônio material e imaterial das criações do espírito humano tem previsão constitucional e infraconstitucional e os herdeiros têm legitimidade para a defesa, em prol do artista, de sua memória, imagem pública e obra.

Para a lei, os herdeiros são investidos na posse e administração dos bens do autor da herança, inclusive, os imateriais como no caso do legado de Dodô em questão.

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Além da expressão "Dodô & Osmar", título do disco de 1974 da dupla, a ação também questiona o registro das marcas Fobica e Pau Elétrico.

Registro da Fobica, que deu origem ao trio elétrico: ao fundo, os inventores Dodô e Osmar
Registro da Fobica, que deu origem ao trio elétrico: ao fundo, os inventores Dodô e Osmar Imagem: reprodução

Em resposta à notificação extrajudicial, em 22 de dezembro de 2023, Aroldo Macedo afirma ser descabida a pretensão dos herdeiros de Dodô já que não houve qualquer violação de direitos da propriedade intelectual, uma vez que o uso do nome foi devidamente autorizado pelo próprio Dodô na época em que se iniciou o uso.

"O uso da marca "Dodô & Osmar" começou nos anos 1970, como forma de homenagem aos dois grandes autores, de forma a torná-los mais conhecidos, principalmente, como criadores do trio elétrico. Assim, o nome do primeiro disco gravado, intitulado "Dodô & Osmar", em que Armando Macedo era o solista, foi autorizado pelo saudoso Adolpho Antônio Nascimento com a maior satisfação", declara no processo.

Em entrevista à coluna, os herdeiros de Dodô questionam a versão de que Dodô abriu mão dos seus direitos econômicos, tendo uma família numerosa, com 16 filhos.

No documento consta ainda que a marca "Dodô & Osmar" foi registrada no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) em 1998, ou seja, há 25 anos e a marca "Fobica" em 2012. Na época em que foram publicadas as concessões dos registros, não houve qualquer oposição. Já sobre a marca "Pau Elétrico', informa que já se encontra extinta no INPI.

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Além de destacar a relação afetuosa dos dois amigos e a proximidade entre as famílias de ambos, na resposta à notificação judicial, Aroldo Macêdo expressa que Dodô nunca deixou de ser respeitado e homenageado.

"Muito pelo contrário, o nome de Dodô passou a ser devidamente reconhecido em todo o Brasil por conta do disco Jubileu de Prata".

Irmãos Macêdo: Aroldo, Betinho, André e Armandinho
Irmãos Macêdo: Aroldo, Betinho, André e Armandinho Imagem: Divulgação

Para o músico e produtor cultural Carlinhos de Dodô, houve por parte da família Nascimento uma tolerância em respeito à amizade dos dois músicos. Porém, com a morte de Osmar, em 1997, ficou ainda mais grave a criação de narrativas "para distorcer e apagar o direito de propriedade intelectual de Dodô", denuncia.

Carlinhos aponta que no ano passado, nas comemorações pelo centenário de nascimento de Osmar Macêdo ficou ainda mais evidente a tentativa de esquecimento do amigo e parceiro de criações. Além disso não houve nenhuma celebração aos cem anos de Dodô, três anos antes.

"Há uma amnésia seletiva e um carrossel de narrativas fantasiosas. Já disseram que Dodô e Osmar estudaram eletrônica juntos e que foi Osmar quem impulsionou Dodô, querendo diminuir a genialidade do homem preto inventivo que foi Dodô", reclama.

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"Tocador é tocador, inventor é inventor", diz Carlinhos de Dodô, destacando uma maior relevância de Dodô nas invenções da dupla.

"Além de meu avô ser mais velho, quando se conheceram Dodô já tinha parceria com Caymmi e já criava instrumentos em sua oficina", detalha Carlinhos, que integra o grupo musical DNA Dodô, formando por netos e bisneto do artista.

"O DNA Dodô celebra a herança cultural de Dodô e sua significativa contribuição para o Carnaval baiano, revitalizando e reinterpretando seu legado musical para um contexto contemporâneo", informa.

No Carnaval 2024, o grupo completa 10 anos de atividades e desfilará no Furdunço, projeto da Prefeitura de Salvador, que acontece neste domingo, 04, na Orla de Salvador, fazendo o trajeto contrário, da Ondina para a Barra.

Dodô, o preto inventor

A habilidade de Dodô na fabricação de instrumento, ou seja, no ofício de luthier, foi enriquecido pelo seu conhecimento como eletrotécnico e metalúrgico.

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"Se Dodô não tivesse estudado eletrônica nada dessas invenções teriam acontecido. Sem Dodô, o preto inventor, não teria Carnaval moderno", defende Marcus Devolver, músico e cineasta, que junto com a família Nascimento realiza pesquisa sobre o legado de Dodô para uma biografia e um documentário, em produção.

"Não houve a oportunidade de contar a história da guitarra baiana e do trio elétrico pela voz preta de quem criou. Dodô que tinha o conhecimento técnico, o sofrimento na pele e a ideia fixa de amplificar o som do Carnaval", completa Marcus Devolver, músico e cineasta.

Na década de 1930, Dodô já fazia parte do grupo "Três e Meio" - conjunto musical criado por Dorival Caymmi, que animava festas e se apresentava nas estações de rádio e no Carnaval. Em uma entrevista à TV Cultura (veja vídeo), o próprio Caymmi, que era vizinho de Dodô no bairro Santo Antônio, Centro Histórico de Salvador, fala do incômodo do amigo com as pessoas não ouvirem os instrumentos quando o grupo passava em carro aberto, tocando pelas ruas do Carnaval. Por isso, Dodô teve a ideia "avançada" de elevar o som dos instrumentos de cordas.

Ataque à memória coletiva da população negra

A família conta que, a convite de Dodô, Osmar Macêdo passou a integrar o grupo, substituindo Caymmi, que partiu para o Rio de Janeiro.

Ao longo dos anos 1940, a dupla deu continuidade aos experimentos iniciados por Dodô para amplificar o som, mas ainda tinha que enfrentar a microfonia, um entrave para a qualidade sonora.

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Percebendo que o corpo acústico não era mais necessário para gerar som no violâo, em sua oficina, Dodô amarrou um captador sob uma corda em pedaço de pau, cepo maciço em sua bancada, conseguindo gerar som alto e limpo, sem microfonia. A próxima etapa foi aplicar esse experimento aos instrumentos.

DNA Dodô: netos e bisnetos de criador do trio elétrico. De amarelo, Carinhos de Dodô
DNA Dodô: netos e bisnetos de criador do trio elétrico. De amarelo, Carinhos de Dodô Imagem: Divulgação

Dodô e Osmar se apresentavam com os instrumentos criados por eles e eram chamados de dupla elétrica.

Em 1949 e 1950, Dodô e Osmar colocaram aparelhos de som em um carro Ford 1929, criando a fobica. Dodô foi o responsável por fazer uma adaptação elétrica com bateria do caminhão para alimentar o funcionamento dos alto-falantes instalados na fobica.

Trio Elétrico era o nome do conjunto formado pelos músicos Dodô, Osmar e Temístócles Aragão. A primeira apresentação do trio aconteceu no Carnaval de 1951. No ano seguinte, o trio se apresentou pela primeira vez em cima de um caminhão, com oito alto-falantes. A partir daí, todo caminhão com a tecnologia criada por Dodô e Osmar para apresentação no Carnaval passou a ser chamado trio elétrico.

"A rica história por trás da inovadora tecnologia que revolucionou o som do Carnaval, e transformando-o na maior festa de rua do planeta, é resultado da perspicácia, persistência e criatividade de Dodô, o visionário da folia. Seu nome merece destaque por seus feitos. Um inventor negro, que enfrentou as adversidades de sua época, superando a falta de recursos e os obstáculos impostos pela cor de sua pele", destaca Carlinhos de Dodô.

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"A tentativa de apagamento do legado de Dodô é um ataque à memória coletiva da população negra do Brasil
Mara Nascimento, neta de Dodô

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