André Santana

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Opinião

Culto a voduns une enredo da Viradouro ao tema do Carnaval de Salvador 2024

Que o carnaval do Rio de Janeiro e o de Salvador possuem fortes relações históricas ligadas à ancestralidade africana e às origens do samba no Brasil todo mundo já sabe.

Esse ano, contudo, as heranças negras se uniram ainda mais no samba enredo campeão do carnaval do Rio de Janeiro e no tema principal da folia na capital baiana.

A história do culto aos voduns, em especial a Dangbé, divindade serpente da religiosidade do antigo reino do Daomé, na África Ocidental, garantiu o terceiro título à Unidos de Viradouro, escola de samba de Niterói.

No enredo 'Arroboboi, Dangbé', a escola prestou uma homenagem às mulheres guerreiras que eram iniciadas espiritualmente pelas sacerdotisas ao vodum Dangbé, a Dan, um legado ancestral que chegou ao Brasil por meio da travessia atlântica dos africanos escravizados pelo colonialismo europeu.

Em terras brasileiras, o culto dá origem à Casa das Minas no Maranhão e aos terreiros de tradição jeje em Salvador e cidades do Recôncavo da Bahia.

Os dois mais antigos templos jeje são: o Zògbodò Malè Bogun Sejá Húnde, conhecido como Roça do Ventura, em Cachoeira, e Zoogodô Bogun Malê Hundô ou Terreiro do Bogum, em Salvador. Ambos foram reverenciados no desfile campeão da Viradouro.

Nos candomblés de nação jeje, ao invés dos conhecidos orixás, Xangô, Oxum, Oxalá, Ogum e outros, são cultuadas entidades como Lebá, Mawu, Gu, Quevioço, Sapatá, Aguê, Aziri, Bessém, Sobô, Tobossi, Lissá e outros que representam forças da natureza e dinastias do reino do Daomé.

Ergue a casa de Bogum, atabaque na Bahia / Ya é Gu rainha, herdeira do candomblé / Centenário fundamento da costa da Mina / Semente de uma legião de fé / Vive em mim / a irmandade que venceu a dor / A força, herdei de Hundé e da luta Minó

(Samba enredo da Viradouro 2024, composição de Claudio Mattos, Claudio Russo, Julio Alves, Thiago Meiners, Manolo, Anderson Lemos, Vinicius Xavier, Celino Dias, Bertolo e Marco Moreno)

Bloco afro Ilê Aiyê celebra 50 anos de resistência negra no Carnaval da Bahia
Bloco afro Ilê Aiyê celebra 50 anos de resistência negra no Carnaval da Bahia Imagem: André Frutuôso

Bloco afro nasceu em um terreiro Jeje Mahi

Entre os templos religiosos baianos que preservam a cultura de origem do Daomé, incluindo a língua ewé do povo fon e a crença nos voduns, está o terreiro Ilê Axé Jitolú, fundado em 1952, no bairro do Curuzú, por Hilda Dias dos Santos, a venerada mãe Hilda Jitolú (1923-2009).

Foi nesse candomblé, de tradição jeje savalu, que nasceu em 1974, sob as bençãos da yalorixá, o bloco afro Ilê Aiyê, responsável por uma revolução social, política, rítmica e estética no carnaval de Salvador. Existe uma história do carnaval baiano antes e depois do surgimento do Ilê Aiyê, entidade que reposicionou as influências negras para a cidade de Salvador e para a sua maior manifestação cultural que é o carnaval.

O bloco, conhecido como 'O Mais Belo dos Belos', foi criado pelo filho mais velho de mãe Hilda Jitolu, Antônio Carlos dos Santos, o Vovô do Ilê, junto com seus irmãos e vizinhos do Curuzú, com destaque para Apolônio Souza de Jesus Filho, o Popó do Ilê, que faleceu em 1992.

OS 50 anos do Ilê Aiyê foi o tema do carnaval de Salvador em 2024 e a entidade recebeu homenagens de diversos artistas, como Daniela Mercury, Ivete Sangalo e Carlinhos Brown, que se apresentaram no trio elétrico tendo como convidados os percussionistas e cantores do Ilê Aiyê. Durante toda folia, foram destacadas as contribuições do bloco para a valorização da auto-estima do povo negro, o conhecimento sobre a história da África e para a luta contra o racismo e por direitos à cidadania.

Um concurso realizado por uma emissora de tevê baiana premiou a música escolhida pelo público como a que mais representa a história de cinco décadas do bloco afro do Curuzú. A canção vencedora, entre 15 selecionadas, foi 'Herança e Fé' que recebeu mais de 85 mil votos. A canção é de Julinho Magaiver e Marco Poca Olho e foi composta para o desfile do Ilê Aiyê em 2017, justamente quando o tema do bloco foi 'Os povos Ewé/Fon. A influência do jeje para os afrodescendentes'.

Herdamos desses povos sua beleza / Sabedoria da rainha Agotimé / Seu candomblé se fez matriz em nossa crença / Que tem na serpente de Dan, respeito e fé /

Lá vem o Panteão de Dan, Ilê é Jeje Daomé, É Pantera Negra
(Herança e Crença, Julinho Magaiver e Marco Poca Olho, Ilê Aiyê, 2017)


Vodum Serpente e Arco-Íris: símbolos de renovação e sustentação da vida

O panteão da Dan, cantado pelo Ilê Aiyê e celebrado pela cobra que deslizou na Comissão de Frente da Viradouro, é formado pelos voduns serpentes, aos quais são atribuídos o poder sobre o movimento da vida, a renovação e a sustentação do planeta. Além da cobra, essas entidades são simbolizadas no Arco-Íris

Nos terreiros de candomblé da nação ketu nagô, cuja língua prioritária é o iorubá, essas energias ancestrais da serpente são cultuadas como os orixás Oxumarê e Ewá.

Vai serpenteando feito rio ao mar / Arco-íris que no céu vai clarear / Ayi! Que seu veneno seja meu poder / Bessen que corta o amanhecer
(Samba enredo da Viradouro, 2024)

Os terreiros de candomblé, as escolas de samba e os blocos afro do carnaval continuam sendo relicários de uma história ancestral de resistência, fé e preservação de memórias que afirmam a importância dos legados negros na construção do Brasil.

No carnaval de 2024, essas forças se uniram no serpentear corajoso da Dan e no rufar dos tambores do Cururu, que ocuparam o centro da cidade para reivindicar nossas existências e para podermos cantar:

Arroboboi, meu pai! Arroboboi, Dangbé / Destila seu axé na alma e no couro / Derrama nesse chão a sua proteção / Pra vitória do povo negro contra a escravidão.

Ouça a canção tema do desfile do Ilê Aiyê, em 2017, escolhida como a que mais representa os 50 anos do bloco afro da Bahia:
https://noticias.uol.com.br/videos/2024/02/15/carnaval-2017-do-ile-aiye.htm

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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