André Santana

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Opinião

Lula acerta ao acusar genocídio em Gaza, mas erra ao relativizar escravidão

O presidente Lula reiterou, nesta sexta-feira, 23, sua posição crítica diante da ação do governo de Israel na Faixa de Gaza e reafirmou considerar genocídio, e não uma guerra, o que está acontecendo contra o povo palestino, quando civis, entre milhares de crianças e mulheres, estão sendo mortos,

Firme em suas convicções, Lula defendeu a criação do Estado palestino livre e soberano. Mas desta vez, o presidente não equiparou o sofrimento dos palestinos às mortes de judeus comandadas pela sanha assassina de Adolf Hitler. Este foi o ponto central da polêmica gerada pela sua declaração anterior que levou à exploração por parte da gestão do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, que tentou colocar o presidente do Brasil como inimigo dos judeus.

Essa mesma contundência seria bastante relevante se dirigida aos genocídios perpetrados e minimizados no Brasil.

Diferente do pronunciamento sobre o conflito em Gaza, em que nada faz diminuir o horror do Holocausto judeu, Lula relativizou em duas ocasiões a escravidão de povos africanos, cujas consequências determinam as persistentes desigualdades raciais no Brasil e a violência ainda sentida pelos negros brasileiros.

Somente no primeiro ano desse seu novo mandato como presidente, Lula tentou apontar algo de positivo na tragédia escravocrata que envolveu mais de 18 milhões de pessoas retiradas do continente e espalhadas pelo mundo em um processo genocida de torturas, escravização e mortes em massa.

Em março de 2023, durante discurso na 52ª Assembleia Geral dos Povos Indígenas de Roraima, Lula afirmou que a escravidão, apesar de ter sido uma desgraça, teve uma consequência boa, a miscigenação.

Depois, em julho, o absurdo foi ainda pior, pois ocorreu em solo africano. Em viagem a Cabo Verde, Lula disse ter "profunda gratidão" à África pelo que foi produzido durante o período da escravidão no Brasil e ainda prometeu retribuir ao continente os "benefícios" da tragédia escravocrata, transferindo tecnologia e formação de profissionais.

Essas falas de relativização do horror sofrido pelo povo africano, que desrespeita a dor sofrida ainda hoje pelos seus descendentes espalhados pelo mundo, inclusive os negros brasileiros, não comoveram aqueles que agora pedem até o impeachment de Lula por suposta solidariedade ao povo judeu.


Faltam representações simbólicas sobre o horror da escravidão


Mesmo com todo empenho de historiadores e educadores comprometidos e da ação política dos movimentos sociais, ainda falta muito mais produções simbólicas para ampliar o alcance da compreensão sobre o que foi a escravidão e como ela ainda é responsável pela situação de miséria e violência em que vivem boa parte dos brasileiros.

Nem mesmo um "Museu da Escravidão" temos para promover um ato de repúdio às falas de Lula e reafirmar que os únicos benefícios do processo escravocrata ficaram nas heranças e privilégios mantidos pelos descendentes dos colonizadores, que formam uma elite política e econômica neste país.

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Sem se dar ao trabalho de conhecer verdadeiramente o poder genocida do empreendimento colonial europeu e as estruturas edificadas no Brasil que sustentam as desigualdades raciais e impedem a cidadania dos negros no país, Lula segue considerando esse um tema menor.

Daí as falas carregadas de preconceitos como as que se referiu recentemente a uma jovem negra, e a toda população afrodescendente, em uma fábrica em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista. Ou no total desprezo às reivindicações dos movimentos negros na negativa à indicação de uma juíza negra para vaga no STF.

O racismo institucional conservado nas estruturas de poder do Brasil, mesmo quando sob gestões progressistas, tratam de minimizar diariamente o genocídio negro e indígena em curso no país.

Basta ver o tratamento dado pelos governantes, de esquerda ou de direita, às chacinas nas favelas e às mortes de jovens negros nas operações policiais pelo Brasil. Basta ter a sensibilidade de olhar a perseguição aos indígenas da Amazônia e em outros territórios brasileiros, a exemplo do sul da Bahia.

A exposição da maldade influencia nossa cultura

O que mais se ouviu e se leu nos últimos dias é que não se pode fazer ranking entre os genocídios sob pena de diminuir a relevância da dor de um povo frente a outro. Eu concordo.

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A gravidade da fala de Lula está justamente na menção a um nome que sintetiza um contexto histórico amplamente conhecido e reprovado pela humanidade. Hitler remete ao nazismo e ao Holocausto judeu que vitimou mais de 6 milhões de pessoas, incluindo povos ciganos, pessoas com deficiência, homossexuais e demais grupos odiados pelo führer.

Mesmo quem não acompanha nada da geopolítica, e até os que seriam incapazes de apontar a localização de Israel no mapa mundial, e que não entendem a complexidade das disputas na região, se sentiram no direito de defender o povo judeu por conta de toda uma memória de sofrimento coletivamente compartilhada.

O presidente brasileiro não utilizou o termo Holocausto, nem minimizou a dor dos judeus, mas mesmo assim foi chamado de negacionista e antissemita por opositores do seu governo, estimulados pela exploração da fala feita pelo governo de Israel.

Com popularidade em baixa no próprio território e sem o apoio mundial à guerra travada na Faixa de Gaza, a gestão do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu procurou fazer do pronunciamento de Lula, um líder com projeção internacional, uma tábua de sustentação de qualquer resquício de moral que tenha motivado as reações iniciais aos ataques terroristas do Hamas em outubro passado.

Foi a farta documentação sobre o Holocausto judeu, uma rica produção artística e midiática com livros e filmes ficcionais e documentários, que fizeram a humanidade compreender o horror sofrido pelas vítimas dos campos de concentração na mais alta exposição da maldade e bestialidade humana.

Uma necessária condenação da crueldade da força do ódio, infelizmente, ainda não vista em outros genocídios experimentados por outros grupos étnicos pelo mundo, como a tragédia da escravização de africanos e a dizimação de povos indígenas na colonização espanhola nas Américas e portuguesa, no Brasil. Quem sabe tivesse, poderíamos também ter um olhar de sensibilidade ao sofrimento e entendimento da gravidade do que foram as milhões de mortes africanas - e de seus descendentes até hoje.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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