André Santana

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Opinião

Em Renascer, Inácia desfaz a ignorância contra o Candomblé na tv

O 21 de março, data que a ONU definiu como o Dia Internacional Contra a Discriminação Racial, no Brasil se tornou, desde 2023, o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé. Trata-se de um justo reconhecimento a uma das heranças civilizatórias legadas pelos povos africanos para a formação do Brasil. São heranças sagradas, preservadas e renovadas nos terreiros, casas, centros e templos em que se veneram Orixás, Inquices, Voduns e Encantados, que simbolizam as forças da natureza e um modo ancestral de viver o coletivo e o tempo das coisas e dos humanos.

Parte dessa história e da importância do Candomblé está sendo contada em horário nobre da televisão brasileira, na telenovela Renascer, da Rede Globo. A cada cena da personagem Inácia, interpretada com sensibilidade e talento pela atriz Edvana Carvalho, o Brasil se reencontra com um pedaço enorme da sua fé, que tentou-se esconder.

Assim como a personagem, que foi obrigada a esquecer suas heranças de fé, o povo brasileiro foi forçado a tratar tudo que veio da África como ruim, perigoso, do mal e que se deve combater. Contudo, acompanhar o renascimento de Inácia para a religiosidade deixado por seus antepassados tem sido uma oportunidade para o Brasil conhecer aquilo que foi ignorado e se reconhecer nos saberes sagrados ainda preservados pela religiosidade negra.

Nos diálogos de Inácia, principalmente com os representantes de outras religiões, como o padre e o pastor, ela apresenta ensinamentos para uma vida de comunhão, de respeito e de compreensão do poder que está em cada elemento da natureza. Com generosidade, ela vai explicando os elementos da sua fé e vai fazendo despertar nos líderes religiosos, e também nos telespectadores, os valores guardados nos ritos que buscam o íntimo encontro com os poderes que compõem a natureza, incluído os seres humanos.

Inácia renasce para fé

Trata-se de uma representação midiática histórica que resulta tanto de um enredo comprometido em reparar o tratamento dado a essas religiões, dos diálogos bem construídos, da direção primorosa da novela e, óbvio, da entrega da atriz, que assumiu o desafio de interpretar a personagem anteriormente vivida pelas atrizes Solange Couto (na primeira fase) e a incrível Chica Xavier, falecida em 2020, que cativou o Brasil com a afetuosa e sábia Inácia da primeira versão de Renascer, de 1993. Além de abrir os caminhos para a presença negra nas telas, a também baiana Chica Xavier, que era yalorixá, foi uma defensora do tratamento respeitoso à religiosidade negra.

Neste remake, com as questões religiosa ainda mais evidenciadas, a empregada do coronel José Inocêncio tem função ainda mais relevante na trama, com a utilização dos seus conhecimentos espirituais para o cuidado com o jovem coronel, contribuindo para ele renascer após ter o corpo todo despelado nas matas de cacau. Inácia acompanha toda a trajetória da família, antevendo e alertando sobre os dramas, enquanto vive, ela própria, o reencontro com suas heranças, que não são de terras cultivadas, mas de um poder ancestral, que permitiu a permanência de um povo.

Edvana Carvalho, 55 anos, nasceu em Salvador e foi forjada no palco junto ao Bando de Teatro Olodum, companhia de teatro negro, criada em 1990, empenhada em produzir uma arte popular e engajada na valorização da performance negra e do talento de artistas como Lázaro Ramos, Érico Brás, Valdinéia Soriano, Virginia Rodrigues, Lucas Leto, Sulivã Bispo e tantos e tantas despertados para as artes cênicas pela linguagem artística criada e consolidada pelo grupo nas últimas três décadas. Além de trabalhos na televisão, onde atuou em produções como Malhação e Pega Pega, Edvana participou do filme Ó paí, ó, um sucesso nos cinemas do Brasil em 2007, e que ganhou uma continuidade no ano passado.

Inácia é uma reparação às imagens negativas do Candomblé

A data de hoje é necessária porque o Brasil ainda expressa seu racismo na perseguição às religiões de matrizes africanas. Os frequentadores do Candomblé e a Umbanda têm o direito constitucional de professar uma fé violados no cotidiano das grandes cidades e no interior do país.

A intolerância ou racismo religioso é praticado por olhares desrespeitosos, insultos proferidos e até na invasão de terreiros, como já registrados em cidades de maioria negra como Salvador e Rio de Janeiro. Institucionalmente, o preconceito religioso é latente no tratamento diferenciado dado por governos e poderes públicos a líderes e instituições de religiões que historicamente foram priorizados pelo Estado, no caso do Brasil o cristianismo, seja na representação da Igreja Católica ou mais atualmente nas diversas segmentações evangélicas, que estão associadas ao poder político, ocupando espaços cada vez mais nas câmaras municipais, assembleias legislativas dos estados e no Congresso Federal.

Todo esse racismo religioso sempre encontrou nos meios de comunicação respaldo e força de propagação por meio das representações negativas ou jocosas das práticas do Candomblé. Os rituais, assim como seus líderes, foram transformados em personagens caricaturados para fazer rir e menosprezar uma cultura ancestral.

Na contramão dessas imagens midiáticas de ignorância e de obscurantismo contra uma fé, as cenas de Inácia em Renascer têm sido um belo reencontro com um legado que nos formou como povo, que permitiu nossa sobrevivência em meio às violências e continua nos dando ensinamentos para resistir.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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