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Camilo Vannuchi

Hoje eu só acredito em teorias da conspiração

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) durante cerimônia no Palácio do Planalto (22/10/2020) - Mateus Bonomi/AGIF/Estadão Conteúdo
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) durante cerimônia no Palácio do Planalto (22/10/2020) Imagem: Mateus Bonomi/AGIF/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

29/10/2020 08h40

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Foi o ex-chanceler Celso Amorim quem disse, no escaldo pós-golpe de 2016: "Quem quiser acreditar em coincidência que acredite. Eu só acredito em teorias da conspiração".

Deve ser cansaço da minha parte. Ou irritação profunda com a galera do Ensino Fundamental que governa o Brasil. Já não consigo ler uma notícia que venha do Planalto sem tirar conclusões pesadíssimas a cerca dos objetivos de cada proposta, cada decreto, cada nomeação.

Há exatos dois anos, na manhã de 29 de outubro de 2018, os jornais de maior circulação no Brasil estampavam basicamente a mesma manchete: "Bolsonaro presidente", publicaram a Folha e o Zero Hora. "Bolsonaro é eleito presidente", cravaram o Valor e o Globo. "Bolsonaro eleito com 55%", detalhou O Dia. "Ele, sim", foi o título estampado em letras garrafais no Estado de Minas. "Bolsonaro é eleito e promete defender reformas, liberdades e democracia", reportou o Estadão. Ã-hã.

Um dia antes, 57,7 milhões de eleitores haviam digitado 17 nas urnas. Em número absoluto, Bolsonaro teve mais votos naquele segundo turno do que quase todos os presidentes da história do Brasil. Uma única vez, em 2006, um candidato obteve mais votos: candidato à reeleição, Lula foi o escolhido de 58,3 milhões de brasileiros.

Já naquele dia 28, no primeiro pronunciamento como presidente eleito, Bolsonaro parecia reproduzir, no sorriso travesso, o espírito rebelde do saudoso (e teimoso) Zagallo, quatro vezes campeão do mundo, que respondeu às críticas sobre sua convocação como auxiliar técnico da Seleção Brasileira de 1994 dizendo: "Vocês vão ter que me engolir". O recado era o mesmo. Podem espernear. Podem manter na foto de perfil o filtro colorido de #EleNão ou trocá-lo por #NinguémSoltaAMãoDeNinguém, #SereiResistência ou #NotMyPresident. O Estado sou eu!

Desde então, tem sido particularmente difícil não concordar com Celso Amorim. Cada declaração, um espanto.

Jair Messias Bolsonaro ainda não completou dois anos no cargo e já destruiu muita coisa. Ou tem se esforçado para destruir. A lista é imensa, e esta coluna não é sobre isso. Começa lá atrás, com o fim do Ministério da Cultura e a incapacidade de encontrar alguém para a função de secretário nacional, esvaziando também as políticas públicas para o setor, os programas de fomento às artes cênicas e ao audiovisual, decretando a morte por inanição e falência múltipla de órgãos da Cinemateca Brasileira, que hoje respira com respirador artificial e a ajuda de outros aparelhos. No âmbito da justiça e dos direitos humanos, então... Mecanismo de combate à tortura? Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos? O desmonte mais recente nesse âmbito foi o da Lava Jato, uma decisão que não é lamentável pelo gesto em si, haja vista a infestação de fungos e parasitas que já havia condenado a operação desde a origem (eu avisei), como amplamente divulgado mais tarde pela série de reportagens do Intercept Brasil conhecida como "Vaza Jato", mas pela justificativa oficial: "Acabei com a Lava Jato porque não tem mais corrupção no governo", declarou o capitão. Agora me diz: dá para acreditar em coincidências?

Para muitos, trata-se do pior presidente desde a redemocratização. Para outros, o pior desde Médici, cinquenta anos depois. Há ainda os que afirmam ser o pior presidente em toda a História do Brasil.

O ímpeto destrutivo de Bolsonaro atinge pessoas e instituições. Destruir, no caso, não é figura de retórica. Tem jornalista que se orgulha de "destruir" o entrevistado. Tem blogueiro que ganha a vida lacrando na internet, uma forma de "destruir" o senso comum ou o interlocutor inconveniente. Nos debates eleitorais, candidatas e candidatos se esmeram em tentar "destruir" o adversário. No caso de um presidente incendiário, que o escritor Frei Betto costuma chamar coerentemente de BolsoNero, a destruição é real, tangível. Seu ímpeto destrutivo está presente na omissão diante dos incêndios que atingem o Pantanal, o Cerrado e a Amazônia em índices inéditos. Está presente nas declarações em que continua minimizando a letalidade da Covid-19. Recentemente, reclamou da pressa em produzir e distribuir vacinas contra o novo coronavírus, com a mesma tranquilidade com que chamou de gripezinha e respondeu "e daí?" ao comentar o prognóstico de centenas de milhares de mortes.

Os ataques intermitentes ao Serviço Único de Saúde seguem a mesma lógica. Para mim, recém-convertido às teorias da conspiração, a obsessão presidencial em implodir o SUS nada tem a ver com garantir atendimento de qualidade e gratuito para mais gente (gratuito em termos, uma vez que os serviços de saúde são pagos por meio de tributos, ou seja, todos nós pagamos o SUS para acessá-lo e também para subsidiar o acesso pela população mais pobre, o que torna especialmente belo e justo o projeto de universalização do direito à saúde promulgado em 1988). É parte do desmonte, da mesma destruição que busca tirar o pobre do orçamento e autorizar a morte dos que não farão falta, daqueles que podem morrer.

Quem são esses? São aqueles que mais atrapalham do que ajudam. Aqueles que se amontoam nas calçadas sujando as ruas ou que causam um inconveniente danado ao rondar nossos carros nos sinais. Aqueles que ocupam terras enormes com aldeias humildes, subpovoadas, e ainda impedem as empresas produtivas, exportadoras de carne e soja, de desmatar e transformar tudo em pasto e lavoura. Aqueles que migram para fugir da fome, que constroem mais uma laje para acomodar mais uma família, que ocupam. Aqueles que dependem dos programas de transferência de renda. Aqueles que não teriam acesso a serviços de saúde não fosse pelo SUS.

No Brasil de Bolsonaro, a necropolítica está na ordem do dia - elevada à terceira ou quarta potência em comparação com as três décadas anteriores - e se estende também à morte das coisas, das políticas sociais, das instituições. Da democracia.

Mas isso, eu sei, é tudo teoria da conspiração.