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Camilo Vannuchi

Morreu Doca Street, mas não a violência contra as mulheres

Doca Street está convicto de sua absolvição, diz reportagem sobre o caso Ângela Diniz publicada no jornal O Globo em 18 de outubro de 1979 - Reprodução
Doca Street está convicto de sua absolvição, diz reportagem sobre o caso Ângela Diniz publicada no jornal O Globo em 18 de outubro de 1979 Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

20/12/2020 10h47

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Três vídeos curtos, publicados no site Papo de Mãe na última quinta-feira (17), revelaram trechos de uma audiência sobre pensão e guarda de filhos ocorrida por videoconferência em São Paulo. Neles, o juiz Rodrigo de Azevedo Costa, da Vara da Família e Sucessões da capital paulista, zomba da Lei Maria da Penha, que protege as mulheres de atos de violência doméstica, e atribui culpa à mãe agredida. "(Se tem Lei Maria da Penha) eu não tô nem aí", diz o magistrado. "Uma coisa eu aprendi na vida de juiz: ninguém agride ninguém de graça". A defesa protesta, mas o juiz dá seguimento ao sermão, dizendo que, às vezes, basta um olhar para alguém se sentir agredido. "Qualquer coisinha vira Maria da Penha; isso é muito chato", diz ele no segundo vídeo.

Na sequência, o juiz não hesita em tratar a vítima como ré, ameaçando-a. "Eu já tirei guarda de mãe que cerceou acesso de pai. Já tirei e posso fazer de novo". Segundo o juiz, a mulher agredida deveria rever a medida protetiva e dar uma segunda chance ao agressor. "Quando a cabeça não pensa, o corpo padece", diz. "Se São Pedro se redimiu, talvez o pai possa... Ele pode ser um figo podre, mas foi uma escolha sua; e você não tem mais doze anos".

O caso motivou uma nota de repúdio da OAB-SP e foi parar na Corregedoria do Tribunal de Justiça. Condutas como a deste juiz, no entanto, não deveriam ser tratadas apenas como episódios isolados. Recentemente, o juiz Rudson Marcos, de Santa Catarina, assumiu postura semelhante ao absolver o empresário André de Camargo Aranha da acusação de estuprar a jovem Mariana Ferrer durante uma festa ocorrida em 2018 em Florianópolis. O caso ganhou repercussão após a sentença determinar que o réu não teve a intenção de cometer o estupro, o suficiente para que as redes sociais "traduzissem" o veredicto do juiz com indignação e ironia: foi um estupro culposo, ou seja, o estuprador não teve a intenção de estuprar. Segundo a tese acatada pelo magistrado de Santa Catarina, o empresário não tinha como saber que a vítima estava embriagada ou dopada, ou seja, em situação de vulnerabilidade, tampouco poderia prever que a relação não era consentida. Tratou-se, segundo a sentença, de uma relação sexual consensual.

Trechos da audiência que absolveu o empresário foram divulgados em vídeo pelo site Intercept Brasil. Chama atenção a forma desrespeitosa com que o advogado do réu se dirige à jovem, produzindo mais uma vez o que vem sendo chamado de criminalização da vítima, sem que houvesse qualquer intervenção do juiz no sentido de interromper a sequência de humilhações. "Não gostaria de ter uma filha no nível dela", diz o advogado, exibindo na audiência fotografias postadas por Mariana nas redes sociais (e que nada têm a ver com o caso) a fim de montar um histórico supostamente desabonador, como salvo-conduto para a violência sexual cometida por seu cliente. Ainda segundo o advogado, Mariana teria tirado fotos "em posição ginecológica".

A estratégia é recorrente. Para absolver um abusador, nada melhor do que depreciar o comportamento da vítima, reproduzindo a tese de que a mulher "provocou", "seduziu", "nunca foi santa". Mariana chora. Pede para ser respeitada. "Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lágrima de crocodilo", diz o advogado. O juiz silencia. Sugere apenas que Mariana vá tomar um copo de água para se recompor. "As cenas da audiência de Mariana Ferrer são estarrecedoras. O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação", tuitou Gilmar Mendes, ministro do STF. Não é de se estranhar que o episódio tenha ficado conhecido como "o caso Mariana Ferrer" enquanto o nome de André Aranha, o acusado, tenha desaparecido dos noticiários. Aos homens, o benefício da discrição, o beneplácito do anonimato e a platitude da absolvição. Foi assim também com "o caso Ângela Diniz", nos anos 1970.

Um dia após a divulgação pelo Papo de Mãe dos vídeos em que o juiz Rodrigo de Azevedo Costa aparece zombando da Lei Maria da Penha - e, principalmente, de uma mãe com histórico de agressões que buscou refúgio na lei para pedir medidas protetivas -, morreu em São Paulo, aos 86 anos, o ex-playboy Doca Street, assassino confesso da socialite Ângela Diniz. Em 30 de dezembro de 1976, Doca Street assassinou a então namorada com quatro tiros no rosto. Supostamente, ela teria rompido com ele. O alecrim dourado, por sua vez, teria matado "por amor" e "em legítima defesa da honra".

Ao fazer a defesa do acusado, Evandro Lins e Silva, um figurão da época, reproduziu a mesma ladainha de culpar a vítima. Sua estratégia foi descrever o comportamento sexual de Ângela, seu envolvimento com drogas, uma gravíssima acusação de homossexualidade (contém ironia), até que o feminicídio se transformasse numa espécie de assassinato compreensível, palatável, justificável, compreensível. Deu certo. A maior parte da imprensa da época passou a apoiar o playboy, a pintá-lo como vítima. Doca Street foi condenado pelo tribunal do júri por cinco votos a dois e a pena foi estipulada em dois anos de reclusão: dezoito meses pelo crime e outros seis por ter tentado fugir da justiça. Beneficiado com a suspensão condicional da pena após sete meses em restrição de liberdade, enquanto aguardava o julgamento, o assassino foi solto imediatamente. Solto. Imediatamente.

Somente com a crescente indignação de parte da sociedade, sobretudo das mulheres, e de uma importante campanha promovida pelo movimento feminista com o mote "quem ama não mata", um novo julgamento foi marcado para 1981. Desta vez, Doca Street foi condenado a 15 anos de prisão. Essa história toda está muito bem contata no podcast Praia dos Ossos, que este colunista recomenda vivamente.

Na última semana, o assediador Fernando Cury, deputado estadual pelo Cidadania de São Paulo, não hesitou em apalpar os seios da deputada Isa Penna, do PSOL, diante de dezenas de colegas, no plenário da Assembleia Legislativa. Cury não foge à regra. Tampouco os pares que foram a seu gabinete prestar solidariedade ao agressor. Em minutos, difundiram-se acusações referentes à índole ou à moral da deputada. A história se repete. À exaustão. Com Ângela Diniz, com Mariana Ferrer, com Isa Penna, com você, leitora desta coluna, com nossas companheiras, com nossas filhas. O escárnio das instituições e das autoridades que deveriam proteger as vítimas virou regra. E é terrível que seja assim. Quantas Ângelas precisarão ser mortas? Quantas Marianas serão estupradas? Quantas Isas serão abusadas? Quantas mães, agredidas e violentadas, serão humilhadas por juízes e ameaçadas de perder a guarda de seus filhos por ousar denunciar seus agressores?

Os crimes cometidos contra as mulheres, com a inexorável colaboração do sistema de justiça, ontem e hoje, precisam ser contados, denunciados, divulgados amplamente.