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Não há prescrição para o direito à informação
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Imagina a seguinte situação. Um servidor público lotado no Governo Federal é flagrado por uma câmera de TV proferindo impropérios como, por exemplo, "sou a favor da tortura" ou "é pra enfiar no rabo de vocês da imprensa essa lata de leite condensado". Outro servidor, esse lotado no judiciário, vira protagonista de um grande escândalo após a descoberta de que, na condição de juiz de Direito, cometeu abusos ao orientar profissionais do Ministério Público e comemorar a apresentação de uma denúncia, torcendo contra o réu que, dali a alguns meses, ele mesmo teria de julgar. Você também pode analisar outros exemplos. Uma eloquente fotografia mostrando malas com R$ 51 milhões em dinheiro vivo guardadas num apartamento de um ex-ministro de Estado, em Salvador. O áudio de um senador mineiro sugerindo que, para realizar determinada tarefa, seria importante arranjar alguém que "depois a gente mata antes de fazer delação".
Pronto, agora imagina todas essas pessoas, que protagonizaram esses episódios, obtendo na Justiça o direito de retirar todas essas publicações do ar: dos arquivos dos jornais, dos acervos das emissoras de TV ou de toda a internet. Com essa finalidade, um ofício é encaminhado ao UOL pelo poder judiciário, obrigando este portal a apagar toda e qualquer reportagem que tenha feito menção a qualquer desses eventos. Em seguida, o Google é intimado a apagar fotos, áudios, vídeos e outros registros que tenham mencionado o leite condensado no rabo, os diálogos entre juízes e promotores no grupo de WhatsApp mais escandaloso da Nova República, a fortuna lavada pelo ex-ministro baiano ou o excesso de sinceridade do senador mineiro.
E com base em quê o judiciário permitiria tamanho atentado contra o direito à informação? Com base no direito ao esquecimento, um conceito mais ou menos recente no mundo jurídico, não previsto na legislação brasileira, e que tem acirrado os ânimos de muitos operadores do Direito. Nesta quinta-feira (4), o Supremo Tribunal Federal voltará a discutir o tema, inaugurado na tarde de ontem com as exposições dos primeiros amicus curiaes (os "amigos da corte", especialistas convidados pelas partes para fornecer subsídios e argumentos a favor de uma das teses em disputa). Também foi dado início à leitura do voto do relator, ministro Dias Toffoli, que deixou para conclui-lo na próxima sessão. É possível que algum dos demais ministros peça vistas e adie a solução do impasse.
A ação em debate no STF pede que o direito ao esquecimento seja garantido no Brasil. Foi movida por familiares de uma jovem de 18 anos que foi abusada sexualmente e assassinada nos anos 1950. Na época, o caso teve ampla repercussão e se firmou como um dos episódios mais conhecidos da crônica policial, o que motivou a TV Globo a adaptá-lo para um dos programas da série Linha Direta Justiça, em 2004. Na telinha, atrizes e atores reconstituíam, em forma de ficção, os acontecimentos divulgados na imprensa meio século antes. A família não gostou. Chegou a solicitar que o episódio não fosse exibido quando soube de sua existência. Perdeu. Em seguida, processou a emissora por invasão de privacidade e danos morais. Reivindicavam o direito ao esquecimento, ou seja, o direito de exigir que a história da jovem de 18 anos fosse apagada das novas produções televisivas, ou em qualquer outra plataforma, para que a família deixasse de chorar sua perda tantos anos depois. Na visão dessas pessoas, mais vale deletar parte da história do que eternizar a dor daqueles que não gostariam que sua história pessoal permanecesse acessível.
A tese é confrontada por pessoas como Taís Gasparian, advogada especialista em direito à informação e liberdade de expressão. Taís participou da audiência desta quarta-feira representando o amicus curie Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, a Abraji. Taís teme a proliferação de solicitações de retiradas de conteúdo e, o que parece ainda mais grave, a possibilidade de impedir a veiculação de produtos midiáticos, jornalísticos ou não, como o episódio do Linha Direta Justiça de 2004 ou eventuais biografias e reportagens, com base no direito ao esquecimento. Um podcast como Praia dos Ossos, produzido pela Rádio Novelo, poderia ter sua veiculação proibida ou ser retirado do ar por determinação judicial caso algum familiar de Angela Diniz ou Doca Street optasse por impetrar uma ação contra a produtora - ou contra a jornalista - com base no mesmo argumento? Poderia Suzane Von Richthofen impedir a veiculação de séries, livros ou reportagens sobre o assassinato de seus pais, em 2002, uma vez que seria um direito dela ter seu passado esquecido?
Na prática, segundo Taís, quem mais propõe ações que pleiteiam remoção de conteúdo, no Brasil, são representantes da classe política, principalmente em ano eleitoral. "Caso o direito ao esquecimento venha a ser acolhido no país, a decisão certamente beneficiará essas pessoas que tentam esconder informações da população", diz ela. "Trata-se de combater um conceito tão vago que legitime um princípio do segredo, (o direito) de sonegar aos cidadãos o acesso à informação". Nada do que foi será do jeito que já foi um dia.
Adriele Ayres Britto, representando o amicus curie Instituto Vladimir Herzog, qualificou o "pretenso" direito ao esquecimento como um conceito cuja invenção é "diametralmente oposta" ao direito à memória, este sim, garantido na Constituição e de grande valor para a proteção da identidade da sociedade brasileira. Em artigo publicado no jornal O Globo em dezembro, Rogério Sottili, Glenda Mezarobba e Lucas Paolo Vilalta, todos membros do Instituto Vladimir Herzog, argumentam que o direito ao esquecimento não é condição para que haja a devida reparação em caso de violação dos direitos de personalidade. "Já existem mecanismos constitucionais aptos a garantir a proteção dos direitos à privacidade, à intimidade e à honra para aqueles casos em que a retirada de conteúdo se destina à preservação da dignidade humana", diz o texto. "Também há parâmetros bem estabelecidos acerca das responsabilidades administrativa, civil e penal em abusos eventualmente cometidos no exercício da liberdade de expressão".
Apagar deliberadamente o passado ou parte dele é prática historicamente associada a regimes ditatoriais. Hannah Arendt, ao discutir o conceito de verdade factual, lembra-nos que o governo soviético sob Stalin fez sumir dos livros de história o personagem Trotsky, como se ele jamais tivesse existido ou feito parte do movimento que culminou na revolução socialista naquele país. No Brasil, familiares de assassinos e torturadores terão reconhecido o direito inalienável de apagar os nomes de seus pais e avós dos livros de história, sob o argumento de que aquele passado lhes causa constrangimento ou viola sua privacidade, sua honra ou sua intimidade?
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